Acendam-se as luzes outra vez!
Em tempos de pandemia, por mais que se tente evitar, o medo acaba sempre por influenciar o discurso social. Estamos num tempo em que até as luzes do Iluminismo começam a falhar e de repente surgem indivíduos com a vontade de nos mergulhar numa nova idade das trevas com os discursos do costume de “isto é o fim do mundo”, “desta não nos safamos” e “o sermão de (algum apóstolo) já descrevia a chegada do COVID-19”. Entretanto, na televisão há o desconsolado “vamos ficar todos bem”, não com vontade e com determinação, mas antes como se de um último suspiro de quem já não aguenta mais se tratasse. No fundo, há tudo menos o mínimo de coragem e um discurso efetivamente motivador.
Machiavelli, apesar de já ter falecido há quase 500 anos, ainda é um dos filósofos e políticos mais falados de todos os tempos. A sua postura é de brutalidade estratégica e extremamente calculista. Os seus pensamentos em relação ao controlo da população pelo medo, demonstrados na sua mais famosa obra “O Principe”, são muito relevantes para esta questão (aconselho a leitura da obra na íntegra a qualquer interessado). Sumariamente, a ideia que transmite é a de que o medo equivale à arma mais poderosa que pode ser aplicada no controlo populacional. Porém, o que acontece quando este medo não é aplicado por uma pessoa ou entidade concreta, mas por um acidente tão aleatório como um vírus? O que está a acontecer agora: o caos moral e só não está a acontecer o descontrolo social porque, felizmente, foram postas medidas eficazes a tempo de evitar a situação.
E a que situações de caos específicas me refiro? Primeiro, à situação referente aos estudantes/trabalhadores deslocados da Madeira que me afetou diretamente e ainda está a afetar quem ainda não voltou dos sítios onde estuda ou trabalha. A paranoia foi tanta que até frases como “não quiseram ser independentes? Pois agora que o sejam” se tornaram aceitáveis entre vários membros da comunidade madeirense que estavam ansiosos por fechar o aeroporto e deixar qualquer pessoa que estivesse fora a se desenrascar por si mesma, mesmo que fossem os filhos da terra que dela falam com tanto orgulho (e que ultimamente para ela pretendem trabalhar). Acho escusado examinar o quão monstruosa esta atitude é porque os factos falam por si.
O segundo caso refere-se a uma faixa etária afastada da minha, a dos idosos. Acho que todos vimos ou ouvimos falar da foto do idoso no supermercado a olhar para as estantes vazias, um problema sério mas que como de costume foi ignorado. Assim continuou o açambarcamento de bens essenciais por parte de uma parte significantiva da população que mais uma vez decidiu ignorar os apelos contínuos das autoridades de saúde para evitar este tipo de comportamentos. O que se verificou? Não faltaram bens, mas à primeira hipótese a sociedade entrou em modo de “salve-se quem puder” e de repente os mesmos que criticavam a despenalização da eutanásia já ignoravam as óbvias limitações dos idosos (seja em termos de deslocação, seja da sua maior vulnerabilidade em relação ao COVID-19) na aquisição de bens nestes tempos “anormais”. O mesmo ocorreu de forma mais extrema na Madeira, na medida em que mesmo antes de ter surgido o primeiro caso já estavam a ocorrer invasões aos supermercados. Como em relação ao meu grupo, o de estudantes deslocados, o pensamento foi o de “eles que se desenrasquem”.
Na verdade, no momento em que mais foi preciso nos mantermos unidos, viramo-nos uns contra os outros por causa de um vírus que poderia ser muito mais letal e perigoso (e note-se que isto não é uma desvalorização da perigosidade que este vírus efetivamente representa). Dito isto, urge enfrentar esta crise (e a económica que se segue) com mais coragem, empatia e inteligência e com menos ódio e medo, porque os discursos apocalípticos sem sentido e os comportamentos de segregação apenas levam à propagação de informação falsa (a níveis ridículos), ao atraso no encontro de uma solução e ao desenvolvimento de novos problemas como o da assunção sem constrangimentos do racismo em relação aos asiáticos.