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Crónicas

Os dias do vírus (IV)

6 de abril

As prateleiras de papel higiénico continuam vazias. Não parece haver razão para esta devoção. Os açambarcadores são, aliás, gozados, e imagens de papel higiénico giram nas redes sociais em troça como se o rolo fosse a moeda do apocalipse.

A piada é eficaz, mas evita a questão. O que torna o fenómeno curioso é precisamente a inutilidade da compra, de que o próprio comprador necessariamente desconfia.

Arrisco que a explicação seja escatológica. A escatologia é a parte da teologia que trata dos fins últimos do homem, e do que há de acontecer no fim do mundo. Além da ciência dos fins, a escatologia descreve também, por afinidade, o estudo das fezes.

Se as fezes estão associadas ao fim, o papel higiénico é o reset. A garantia que se sobrevive, de dignidade intacta, até à próxima defecação – que aquele fim não é “o” fim. Compramos papel higiénico porque ele alimenta a ilusão de controlo sobre o fim do mundo. Nos dias do vírus, essa ilusão tem um valor simbólico. E é superior ao do dinheiro.

7 de abril

O mundo natural traz a estes dias um consolo insubstituível. Bandos de pássaros invulgares regressam à cidade, a convite de um silêncio limpo e incaracterístico destes céus. Cantam em sítios onde não estavam ou de onde não se ouviam, e integram agora as gravações caseiras de rádio e podcasts. A pé descobre-se a copa de árvores escondidas, que entre bustos e bancos interditos se vingam, com a sua sombra fria, de abusos seculares de gases, amputações e alheamento.

Os pássaros não interferem na rádio, como as árvores não se intrometem na vista destas caminhadas sonâmbulas e apreensivas.

A natureza alivia porque é perpétua, e a ansiedade é produto da efemeridade. Ansiamos por achar que nos falta tempo, e que o damos a perder. Os pássaros e as árvores ocupam o tempo sem o perturbar porque pertencem a uma ordem em que harmonia e sobrevivência são uma e a mesma coisa.

Os censores e exagerados que contestam, da varanda, o pouco passeio ainda permitido, contestam na verdade o direito do homem a integrar a natureza, e a esperança de se redimir através dela.

8 de abril

Registe-se o vazio dos populistas, dos extremistas, da medicina tradicional chinesa, dos xamãs, dos homeopatas, e dos apóstolos anti-vacinação.

É um movimento com anos. Animados por um optimismo infundado, legitimámos por tédio a demagogia, a superstição e a ignorância. As nossas sociedades apodrecem na sua própria prosperidade, respaldadas numa bolsa de mérito, criatividade e conhecimento que as acuda em tempos de crise.

A ciência que hoje nos salva é a que banalmente desprezámos nas nossas escolhas políticas e de consumo. Não nos distraiamos mais.

9 de abril

Uma criança veste uma máscara negra, com uma caveira e ossos cruzados. A mãe leva a já habitual máscara cirúrgica. De mão dada, no regresso da farmácia, doido de contente, jura que ela é a médica, e ele o pirata.

Este capricho aparentemente infantil revela uma aspiração superior. O pequeno intuiu, talvez, que a máscara não era apenas uma recomendação higiénica, mas uma ameaça à sua identidade. Tapar a cara tem uma conotação obscurantista, que não por acaso se difunde com maior sucesso em ambientes repressivos e Estados autoritários. A opção pelo corso é, do mesmo passo, um escape à uniformização e uma forma de expressão pessoal. Esta liberdade subversiva e inata comove. O pirata admoestou a fatalidade e resignação, e reivindicou uma autodeterminação que nunca perdeu. É este o espírito das democracias liberais.

Sexta-feira Santa

Diz-se que o vírus tem propriedades salvíficas ou transformadoras. E há quem o use, até, como pretexto para a Quaresma e a liturgia pascal.

Encaixar o tédio da quarentena na penitência da Quaresma é um exercício tentador. Tem afinidades com os truques típicos da época, como esperar até à meia-noite para se encher de chocolates, ou comer marisco para não comer carne – todos versões mais ou menos sofisticadas de juntar o útil ao agradável, ignorando que o propósito da Quaresma é precisamente separar o útil do agradável.

Mas confiar no vírus para mudar a humanidade é mais do que uma batota. É um perigo.

A sensação de que o vírus nos muda deriva sobretudo da experiência de vulnerabilidade e de impotência, de que todos nos vínhamos desabituando. A lentidão, o isolamento, a obrigação de permanecer à margem, tudo convida a um recuo crítico quanto à nossa vida e sociedade, que facilmente se confunde com o sentimento clássico de introspecção pascal.

Sucede que a Quaresma é sobretudo um recuo desejado e consciente, enquanto o vírus nos encarcera e interpela contra a nossa presumível vontade. Quando dizemos que “o vírus muda”; dizemo-lo na esperança de não termos nós próprios de mudar, de que o mundo melhore sem o nosso incómodo ou energia.

Mas existe uma diferença entre mudar por causa do vírus, e ser mudado pelo vírus. Pense-se na relação entre o jejum, que é uma contestação declarada à cultura de consumo; e a fome, que é dano colateral dessa cultura.

Jesus não passou 40 dias no deserto para se tentar, mas para se preparar para a sua missão terrena. O vírus coloca-nos no deserto, mas não nos explica porquê. Se ficamos à espera que nos explique, é porque aguardamos ainda por um Messias. E essa não é a mensagem da Páscoa.

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