O bom, o mau e os esquecidos
Afinal, decidir o estado de emergência foi fácil, o mais difícil virá depois do seu fim
Somos um país em emergência. Se sair de casa, é preso. Se sair do seu concelho, é preso. Se for à praia, é preso. Se estiver preso, é solto. Somos um país em emergência. António Costa e Rui Rio indignaram-se com a falta de solidariedade do Ministro das finanças holandês. Uma semana depois, juntaram-se para chumbar à Madeira e aos Açores o mesmo que pediram à Europa para Portugal. Somos um país em emergência. O Ministério da Saúde contratou 500 novos enfermeiros para ajudar no combate ao vírus. Paga-lhes 6,42 euros por hora. O Ministério da Cultura decidiu promover um festival de música com Fernando Tordo e alguns amigos. Ia pagar-lhes 1 milhão de euros. Emergência, a quanto obrigas.
O bom: CoFiq em Casa
Henrique, João, Bernardo, Lourenço, Tomás e Pedro. No princípio eram seis. Hoje serão mais de quarenta jovens madeirenses disponíveis para ajudar quem não pode sair de casa por causa do vírus. Em apenas duas semanas, fizeram a diferença na vida de mais de 50 famílias. Pessoas mais velhas, imunodeprimidas, de quarentena, entre tantas outras. Gente que, de outra forma, teria de arriscar uma ida ao supermercado, à farmácia ou aos correios. A oferta de ajuda é feita a troco de nada. Não porque a atitude destes jovens não tenha valor, mas porque não tem preço. Como não tem preço, o esforço de um grupo de jovens da Ponta do Sol que se uniu com o mesmo propósito. Dar a mão a quem mais precisa. Ou a plataforma Bom Vizinho Madeira que junta voluntários de várias áreas e oferece transmissões online que fariam inveja a qualquer serviço público de televisão. Todos eles são parte do mesmo movimento que nos mostrou a solidariedade entre vizinhos, expressa em notas manuscritas afixadas na porta principal dos prédios ou dentro dos elevadores. Todos prontos a ajudar. Muitas vezes sem conhecer a quem ofereceram ajuda ou sequer se dela precisam, mas apenas porque era o mais acertado a fazer. Se há coisa que o vírus nos lembrou, é que não fomos feitos para estar sozinhos.
O mau: Direção-Geral da Saúde
Enquanto o mundo aguarda por uma milagrosa vacina, esquecemo-nos que o combate ao vírus é ganho com organização e informação. Parece anticlimático, quase desanimador, que o fim da pandemia dependa mais do funcionamento das instituições do que de um milagre científico. A varíola é um bom exemplo disso. Apesar da primeira vacina datar de 1796, a doença continuava a ceifar milhões de vidas em pleno século 20. Até que, nos anos 50, a Organização Mundial de Saúde convenceu os países a patrocinarem programas de vacinação. Mais tarde a instituição passaria a receber, de todo o mundo, relatórios semanais com a evolução do combate à doença. Até que, em 1979, a varíola estava eliminada da face da Terra. Foi a primeira e, até hoje, a última vez que conseguimos erradicar uma doença infeciosa. E assim, com organização e informação, vencemos a varíola. Fizemo-lo 150 anos depois da primeira vacina para a doença. É por isso que nos deveria preocupar a intervenção da Direção-Geral da Saúde ao longo da crise pandémica. Primeiro, foi a permissão de visitas aos lares, porque o risco não existia. Todos conhecemos o resultado dessa indecisão. Depois, foi o cordão sanitário anunciado para o Porto e rapidamente desmentido pelo Governo. De seguida, as constantes mudanças na forma como o boletim diário do vírus é apresentado. Mais tarde, a indicação de mortos e novos doentes infetados na Madeira que, afinal, eram do Algarve. E, por fim, a insistência obstinada em atribuir novos infetados à Madeira, com base na sua residência fiscal. Doentes que não estão na Região, que provavelmente não contraíram a doença na Madeira, mas que todos os dias lançam a incerteza sobre os números que as autoridades de saúde regionais publicam. Marcelo prometeu que ninguém nos iria mentir. Só isso não basta.
Os esquecidos: As outras vítimas do vírus
O vírus não tem vítimas de segunda. Mas umas são mais visíveis do que outras. Preocupam-nos os que foram infetados, os que estão nos cuidados intensivos e, muito mais, aqueles que lá lutam pela vida. E não podia ser de outra forma. Mas não nos esqueçamos das vítimas do vírus que não figuram nos boletins diários. Os corredores dos hospitais estão mais vazios, não porque os doentes não existam, mas porque têm medo de lá ir. Os serviços de urgência conhecem uma estranha calma, não porque as urgências não existam, mas porque os doentes ficam em casa até não aguentarem mais. E não é uma crítica à reorientação inevitável dos serviços de saúde, é apenas o reconhecimento de que a sua missão é maior do que parece. As lojas fechadas que escondem histórias de desemprego anunciado. As empresas encerradas que se aguentam na incerteza de dias melhores. Lembrar estas histórias não é minimizar a emergência do vírus, apenas reconhecer que a pobreza também mata. Afinal, decidir o estado de emergência foi fácil, o mais difícil virá depois do seu fim.