Porreirismos
1. Na Operação LEX, ainda em investigação, um antigo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa e um Juiz Desembargador foram escutados a discutir a distribuição de um processo.
Muitos já descreveram competentemente as implicações de viciar o princípio do Juiz natural – na prática, o desvio da regra legal de distribuição aleatória dos processos, e a orientação de processos, por critérios de conveniência, para um ou outro Juiz.
Foquemo-nos, pois, na forma como este sarilho se montou. Transcrevem-se as mensagens:
“Luís, bom dia. Desculpa incomodar. Sei que estás na minha terra (Angola). Aquilo do CM chegou à Relação. Vai ser distribuído na próxima terça. Não posso ser de novo injustiçado só porque me chamo Rui Rangel. Por favor, liga para lá na 2ª. feira ou diz-me como fazer. Controla a situação. Estou muito preocupado. Diz-me qualquer coisa. Abraço”.
“Caro amigo Rangel. Estive na tua linda terra e acabo de aterrar no Rio em trânsito para São Paulo. Manda-me o número do processo para que possa pedir que isto não seja distribuído sem eu regressar. Abraço amigo, Luís.”
(notícia do Observador)
Atente-se à informalidade. Não é a combinação consciente de uma malandrice, é uma conversa amigável, a que não faltam sequer os preliminares das amenidades geográficas.
É possível que noutro lado se combinem impropérios semelhantes. Mas com esta falta de cerimónia? Esta vontade de agradar, este jeito de “ora essa”, o relaxamento de quem cumpre com uma convenção? Só em Portugal.
Combater a corrupção é neste país prematuro. Proponho que se comece por desprezar o porreirismo nacional. Um sinal de atraso, fraqueza e incivilização, marcado a ferro e a fogo pela incapacidade de dizer “não”.
Entretanto, o Presidente da Relação escutado foi constituído arguido. O Juiz Desembargador foi compulsivamente demitido. O actual Presidente do Tribunal, também envolvido, demitiu-se.
Que importa, agora, que continuem amigos?
2. O Tribunal Judicial de Lisboa proferiu uma decisão histórica. Absolveu responsáveis editoriais da revista “Sábado” e do “Correio da Manhã” do crime de desobediência de que tinham sido acusados por divulgar os vídeos dos interrogatórios de José Sócrates e Ricardo Salgado na Operação Marquês. Segundo o Tribunal, e de acordo com a comunicação social, os interrogatórios foram divulgados com o “interesse de informar o público”, o que tornaria lícita a sua exposição.
A decisão é histórica porque relaxa, contra toda a tradição, as regras do segredo de justiça. Mas é histórica, também, porque as parece relaxar de forma pouco compatível com a letra dos Códigos. O processo é público, mas essa publicidade não inclui a transmissão de depoimentos.
É possível que a decisão caia em recurso, se o houver. Mas é sintomática de uma aspiração importante.
É evidente que a publicidade do processo colide com a presunção de inocência e com o interesse de não transformar, como na América, o julgamento num espectáculo. Mas o tempo mediático não se compadece com o tempo da justiça. E o segredo parece, por vezes, um bizantinismo, mais amigo da falta de escrúpulo e da assepsia dos julgamentos de notáveis do que da integridade do processo.
Se os Tribunais aplicam a Justiça em nome do Povo, é natural que o povo queira ver como neles é representado, e dispense o papel marginal que lhe é garantido pelo português criptográfico e pela dimensão titânica dos documentos oficiais. Se falta um remédio cívico para estes crimes de regime, que reste o direito a um juízo paliativo – moral, ou de virtude – sobre os nossos poderosos e governantes.
A lei pode não ter mudado. No entanto, estas coisas movem-se.
3. Na mesma semana, um episódio revelador. Alguns dias depois, uma televisão exibia, em directo e em simultâneo, a leitura da acusação na Operação Marquês e a apresentação do treinador do Sporting. O som continuava, claro, ligado a Rúben Amorim. Aos olhos do Director do canal, o discurso do treinador – o quarto da época – terá parecido mais grave e urgente do que a dignidade quieta de uma toga. Julgando pelas audiências, que é como ele julga, é possível que tenha razão. É possível, no fundo, que o povo continue porreiro. E assim mereça continuar.