Ciclos
Os parentes pobres da atual sociedade são os produtores de alimentos, os eternos explorados
A História da Madeira é normalmente classificada e narrada por ciclos. Tivemos um curto ciclo de produção de cereais, o que hoje parece inimaginável, mas que até possibilitou a sua exportação para o Continente e Norte de África.
Seguiu-se o ciclo do açúcar, porventura o apogeu da importância da Madeira a nível mundial, bem documentada no nosso rico património artístico.
Depois veio o ciclo do vinho, o mais longo, também com marcas na História da Humanidade, como no caso da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, brindada com o nosso vinho.
Hoje vivemos o ciclo do Turismo, com dois séculos de experiência, elitista em tempos, massificado agora, mas também bem documentado na literatura.
Durante estes séculos houve também algo de constante: a exportação de gente, para todos os confins do Império, e fora dele. Brasil, Índias Ocidentais, América, Havai, África do Sul, Europa: o Mundo foi o nosso limite. Assim se manteve o nosso frágil equilíbrio.
Mas na retaguarda desses movimentos, no nosso microcosmos de oitocentos quilómetros quadrados, algo foi acontecendo.
Os holandeses, povo laborioso e tenaz, dizem que Deus fez o Mundo, o e os holandeses a Holanda, numa luta constante contra o mar, ganhando palmo a palmo o seu território.
Então, que dizer dos madeirenses, carregando cesto a cesto a terra pelas encostas, enchendo os poios marcados por muros de pedra arrancada rocha, até conseguir uns metros quadrados de onde obter algum magro sustento?
O atual panorama do coronavírus remeteu-nos ao confinamento. Mas esta paragem forçada pode, e deve ser, aproveitada para refletir, como num retiro espiritual ou num think tank em regime de isolamento.
Nos Estados Unidos, ao despontar da atual crise, houve quem, assisadamente, escrevesse: se os produtores de alimentos adoecerem, o que será de nós? É que pode-se parar ou adiar a produção de automóveis, telemóveis ou computadores, mas a produção de comida não...
Os parentes pobres da atual sociedade são os produtores de alimentos, os eternos explorados, ao sabor das secas, das enxurradas, das pragas, dos intermediários, e sobretudo das flutuações de mercado. Mas são eles que estão na base da cadeia da nossa sobrevivência.
Ruim paga têm aqueles a quem tanto devemos.
O Mundo não voltará a ser o mesmo após esta crise, como sucedeu após 1929 ou 2008. E esperemos que se aprenda a distinguir o essencial do acessório. E que se dê valor ao que é essencial.
Porque, afinal, parece que esquecemos a lenda grega do rei Midas, que pediu aos deuses que tudo quanto tocasse se transformasse em ouro. O pedido foi satisfeito, mas Midas morreu de fome, porque os alimentos em que tocava se tornavam em ouro...