[Pouco] “Amor Em Tempos de Cólera”
1. Disco: uma semana inteira para ouvir o último dos Nine Inch Nails, “Ghosts: V-VI”, é o que vos sugiro. Reconheço que a minha relação com eles nem sempre foi a melhor. Mas este disco cai que nem uma luva nestes tempos que correm. Um duplo álbum dividido em duas partes: “Together” e “Locusts”. Trent Reznor oferece-nos um disco de uma beleza sideral, talvez a banda sonora desta emergência.
2. Livro: “As Areias do Imperador”, de Mia Couto, é leitura para, no mínimo, duas semanas. Uma trilogia que vai muito bem com a sugestão musical desta semana. Intenso, mágico. Se dúvidas houvesse, o escritor moçambicano revela-se como um mestre de uma escrita fantástica e envolvente.
3. Porque anda aí uma grande confusão, comecemos por acertar numa coisa: todas as democracias ocidentais assentam num modelo político criado pelo liberalismo. Sejam repúblicas ou monarquias. Seja em Portugal, no Reino Unido, em França ou nos Estado Unidos. A Revolução Gloriosa de 1688, a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789, assentam no preceito liberal, com raízes na Grécia, da “trias politica”, da divisão dos poderes (executivo, legislativo e judicial), do combate aos privilégios hereditários e ao absolutismo, por um Estado laico e pela liberdade. Ao longo da história estiveram, os liberais, na primeira linha do combate ao fascismo, ao comunismo ou a qualquer outra forma de ditadura.
O actual sistema em que vivemos foi criado pelo liberalismo. A componente reformista da social-democracia é uma herança liberal. A liberdade de expressão e liberdade de associação, poder judiciário independente e julgamentos públicos e transparentes, são valores transversais a todos os que veem na democracia a melhor forma de regime e foram ofertados pelo liberalismo.
Um liberal não é anti-Estado. Há uma diferença entre não ter Estado e ter Estado mínimo. O mínimo, seja lá onde e em relação ao que for, é sempre o mínimo possível. Este mínimo tem muito a ver com o seu trabalho, digamos, físico. Menos gente, menos burocracia, melhor gestão de recursos, resultam em menos custos. Um Estado regulador e fortemente fiscalizador do que regula.
Um liberal não é um ingénuo. Ninguém está mais ciente de que o ser humano, porque é intrinsecamente egoísta, se puder, abusa da boa vontade dos outros. Muitas empresas são geridas por pessoas de má índole. Abominamos o monopólio, pois este reduz a liberdade. Repito: acredito na necessidade da regulação e, acima de tudo, na enorme fiscalização desta por parte do Estado.
Não sou marxista, nem anarquista, nem libertário, nem anarco-capitalista e, como tal, não sou eu (e os que como eu pensam) que procuro a supressão do Estado. Não sou eu que o vejo como uma ferramenta de opressão de classe. Isso é marxismo que tem como fim último a supressão do Estado.
Estamos aqui à mão de semear e por todos criticados. Pela Igreja que ao longo da história viu, o “livre pensar” liberal, como um inimigo. Pelos conservadores porque não entendem o progresso e o futuro. Pelos fascistas porque odeiam a liberdade e o individualismo.
Ser liberal, hoje em dia, é continuar a pôr a liberdade acima de tudo e apoiada na inexistência de compulsão e coacção, apoiada nas relações espontâneas entre os indivíduos. Mas é muito mais do que isso, pois a falta de oportunidades de emprego, educação, saúde, etc., são tão prejudiciais para a liberdade como a compulsão e coacção, porque impedem a realização individual em liberdade. Ao Estado, compete-lhe garantir o acesso de todos (independentemente da sua capacidade económica) aos serviços públicos que asseguram os direitos sociais considerados fundamentais. Agora, o Estado não tem obrigatoriamente de ser o fornecedor do serviço público. Na Holanda, a esmagadora maioria das escolas são privadas. Duvidamos da capacidade do seu ensino? Na Alemanha, não há hospitais públicos e a assistência é feita por intermédio de um seguro de saúde. O mesmo na Suécia. Duvidamos do seu sistema de saúde?
Sou liberal como o são os governos da Irlanda, Holanda, Luxemburgo, Bélgica, Dinamarca, Eslovénia, Estónia, França, Finlândia, Lituânia, Roménia, tudo países com governos onde participam partidos liberais. Partidos que integram o ALDE (Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa).
Já aqui o escrevi na semana passada: tempos excepcionais exigem medidas de excepção. A preocupação que tenho, e que é partilhada por outros, é que se não precavermos a economia esta vai estourar. E virá desemprego e fome. Como 99,9% das empresas portuguesas são PMEs, ou as salvamos, ou vamos morrer da cura. 96% do que estou a falar são Micro-empresas com 4 ou 5 trabalhadores. Se a estes portugueses, não for garantido o emprego, não vai haver Estado que chegue. São 4 milhões e 300 mil trabalhadores num universo de 5 milhões.
Ricardo Arroja relembra, num artigo publicado no Eco, Hayek (O Caminho da Servidão, 1944): “não há incompatibilidade entre o Estado oferecer maior segurança auxiliando na organização do sistema de previdência social e a preservação da liberdade individual. À mesma categoria pertence também o aumento da segurança proporcionado pelo Estado na forma de assistência às vítimas de catástrofes naturais, como terramotos, inundações, etc. Sempre que a acção pública é capaz de mitigar desastres dos quais o indivíduo não se pode defender e contra cujas consequências não pode precaver-se, tal acção deve, indubitavelmente, ser empreendida”. Primeiro deve estar a protecção da vida. Sem esta não há mais nada. E vida implica emprego, dignidade, a possibilidade de escolher a todo o momento o caminho a seguir.
Muitos falam do que não conhecem, com uma propriedade que só demonstra ignorância. É preciso ir ler Adam Smith, John Locke, Jean-Baptiste Say, Thomas Malthus, David Ricardo, Voltaire, Montesquieu, Tocqueville, Burke, Herculano, Benjamin Constant, Bentham, John Stuart Mill, Mises, Berlin, Hayek, Revel e, mesmo, Ayn Rand, para perceber o caminho que o liberalismo fez até à modernidade. Da importância que tem no percurso histórico da humanidade.
Que se manifestem os que são contra a economia de mercado; contra uma regulação mínima que defenda os trabalhadores, os consumidores e a livre concorrência; uma forte fiscalização que reprima e condene aqueles que ultrapassam o regulado; contra a descentralização; contra a democracia e os direitos humanos, sociais e civis; etc.. Tudo isto são valores do liberalismo e aqueles que defendem o mesmo estão connosco no mesmo barco, mesmo que professando ideologia diferente.
Vamos ter muito tempo para discutir preceitos ideológicos. Este tempo é de acção. Esta tem de ser rápida e eficiente. Finalmente vê-se, da parte do Governo, o assumir de medidas efectivas que podem reduzir, e muito, a crise que aí vem. E escrevo isto com enorme satisfação.
4. É verdade que, na primeira linha deste combate, estão os médicos, enfermeiros, auxiliares, apoio administrativo, bombeiros, polícias, comunicação social, etc..
Mas há uma segunda linha de vital importância, que também se expõe todos os dias. Aqueles que fazem com que a nossa vida continue a funcionar com alguma normalidade: recolha de lixo, águas, electricidade, gás, telecomunicações e redes, professores, funcionários públicos, transportes, abastecimentos, funcionários de supermercados, mini-mercados, frutarias, padarias, o comércio permitido que continua aberto, restaurantes, etc. Todos a nos proporcionarem o conforto possível, neste momento estranho.
E nós, numa terceira linha, todos nós os que ficamos em casa e que cumprimos escrupulosamente o confinamento.
Sei que vale pouco, mas a todos, a todos vós o meu muito, muito obrigado! Respect!!!!