‘Vão-se os anéis ficam os dedos’
Em 2002 Durão Barroso disse de forma solene que o país estava “de tanga”. Literalmente. A herança financeira do último governo socialista de António Guterres deixou os cofres públicos depauperados. O novo primeiro-ministro social-democrata ensaiou, então, uma série de novas medidas que garantisse algum dinheiro à esfera pública. Uma delas preconizava a alienação de património público, entre os quais infraestruturas militares. Com a polémica instalada na sociedade procurei de imediato reacções junto de especialistas, historiadores, economistas e o país frequentador dos fóruns radiofónicos e jornais televisivos que adora emitir opinião sobre tudo. De entre eles uma voz avisada, conhecedora e que mantinha no pequeno ecrã um dos programas com maior audiência e longevidade. Liguei para o produtor do professor José Hermano Saraiva, que era também seu assistente e o motorista que o conduzia pelo país fora. Estava eu convencido que o historiador iria arrasar a medida proposta pelo governo de Barroso-Portas, com declarações que fariam de certeza a manchete do jornal para onde trabalhava. Do outro lado da linha encontrei uma voz pausada na peculiar forma de se expressar. Estava em trânsito para uma aldeia qualquer do Norte. Perante a minha insistência e estupefacção, atirou: “Meu caro amigo, vão-se os anéis ficam os dedos”. E explicou que em situações extremas, de graves dificuldades, têm de ser tomadas decisões que podem chocar, mas que são necessárias para debelar as dificuldades. E deu-me diversos exemplos da já longa história do País. Rapidamente comecei a ver a medida governamental com outros olhos. Obviamente que as declarações do professor não fizeram manchete nenhuma e foram remetidas para um artigo genérico sobre o tema.
A reacção de Saraiva tem-me vindo à memória muitas vezes nesta última semana, de cárcere para muitos portugueses.
Ainda estamos atónitos com todo este desenrolar de acontecimentos, mas o momento obriga a medidas drásticas, muito mais do que a de vender património histórico.
Esta pandemia vai dar cabo do tecido empresarial e do motor da nossa economia. A nossa dependência do turismo deixa-nos em crise profunda, que deverá colocar muitos no desemprego e em situação de carência. A contracção da economia madeirense é um facto dramático, mas infelizmente necessário. Perante a ameaça da Covid-19 não podemos vacilar. Temos de ser rápidos na acção. Temos de ter políticos decididos, corajosos e não hesitantes, porque este tempo não é da política. É de líderes que guiem, que orientem e que protejam o país e as suas regiões do vírus invasor. A normalização vem a seguir, com as ajudas que se vão impor, com linhas de crédito favoráveis, com os fundos de Bruxelas. A solidariedade tem de funcionar. Estamos em suspenso, mas com vontade de vencer uma crise que alterou todos os nossos hábitos. Todas as rotinas de quem nunca vivenciou uma guerra. No imediato há que assegurar a subsistência dos que vão ficar privados dos seus salários. Que à pandemia não se junte mais miséria social.
Nenhum país estava preparado para uma infecção desta dimensão. Pouco importam os palpites dos ‘treinadores de bancada’. Importa sim cumprir com a obrigatoriedade de confinamento às residências. É a vacina mais eficaz neste momento. E se não conseguirmos evitar o avanço da Covid-19 que sejam tomadas medidas mais drásticas, como as de promover cercas sanitárias. O que não podem é subsistir dúvidas de que não foi feito tudo o que estava ao nosso alcance para evitar mortes, o descalabro e o colapso do nosso débil sistema de saúde.
Situações excecpcionais carecem de medidas excepcionais, sejam elas de esquerda ou de direita, com uma certeza: tudo a partir de agora será diferente. Da economia à nossa própria vivência em sociedade.