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Crónicas

Os dias do vírus (I)

1. Cada época tem o mal que a define.

Em tempos de guerra, Churchill dizia que a verdade era uma coisa tão preciosa que precisava de uma escolta de mentiras. Em tempo de vírus, uma mentira é uma coisa tão preciosa que precisa de uma escolta de verdades.

Pelas medidas dos Estados, percebemos que é verdade que devemos lavar as mãos, evitar ajuntamentos, trabalhar a partir de casa, se possível, e etc..

Mas percebemos, também, que é mentira que cada Estado conheça de antemão os caminhos e os meios do seu combate. Percebemos que é mentira que o COVID-19 vá estagnar e desaparecer com duas semanas de isolamento. Percebemos que estes dias são cruciais para adiar o contágio e defender o nosso sistema de saúde. Mas percebemos que o vírus vem para ficar. E que será preciso produzir, consumir, e trocar bens e serviços enquanto ele fica.

Cada época tem o mal que a define. Este mal define-nos pelo egoísmo: pela arrogância, a insensibilidade, e o medo do egoísmo, e pelas mentiras à sua volta.

2. É arrogante julgar que se tinha, há duas semanas, noção do risco ou do impacto que o COVID teria nas nossas vidas. Não a tínhamos, assim como não a tinham os Primeiros-Ministros da melhor parte da Europa e do Mundo. É arrogante julgar que aceitaríamos, então, as medidas que reclamamos hoje – não as aceitaríamos, e por isso não fomos logo para casa, nem pedimos para ir.

É arrogante pensar que conseguíamos, numa pandemia global, habitar temporariamente um oásis de imunidade ou conhecimento perfeito. Ou julgar que podíamos isolar a Madeira do vírus, em poucos dias e a golpes sucessivos de desobediência civil.

A condição humana tem limitações científicas, de decisão moral e até política. A vontade de as eliminar não é crítica, nem progressista – é utópica. E essa vontade parte do egoísmo porque parte de um desejo de libertação das imperfeições dos outros. Como se fossem muito diferentes das nossas.

3. É insensível romantizar a quarentena ou o confinamento social.

Quem fala nos dias do vírus como uma oportunidade para repensar hábitos de vida, de consumo, e de sustentabilidade ambiental, não deve levar a pergunta até ao fim?

Se tem uma casa; se tem dinheiro no banco; se consegue pagar os seus impostos, compromissos, e prestações sociais; se ainda tem um trabalho; se os seus pais não precisam de ajuda; se, diante de tudo isto, ainda lhe dá para filosofias; não será um privilegiado?

‘Recentrar no essencial?’ Há quem viva no essencial todos os dias. A atender a mesas de bares e restaurantes, a limpar hotéis, a recuperar a fachada de um prédio, a conduzir, em biscates, em pequenas repartições do Estado. Recepcionistas, fazem o que não se faz de casa. No osso, sem poupanças, e sem perspectivas para além do dia-a-dia. Serão eles os primeiros.

A ‘insustentabilidade’ do capitalismo globalizado põe pão na mesa de muita gente. E esta crise escolhe as vítimas com uma desigualdade cruel e particular. É por isso, também, que a questão é bem mais penosa do que queremos crer.

4. O medo. É por medo que se julga que o vírus será eliminado pela força. É por medo que se diabolizam turistas, e se proíbem estrangeiros nos autocarros. É por medo que se maltratam, culpam e escondem possíveis infectados. É por medo que se censuram exageradamente os velhos. É por medo que se subscrevem mezinhas e excessos profilácticos. E é por medo que à hora se actualizam os mortos e detectados.

O medo é o mais esquivo dos egoísmos, porque nunca usa o seu verdadeiro nome. O medo diz-se prudente quando é paranóico, e diz-se informativo quando é compulsivo. O medo não se conhece pelo que diz, mas pela raiz daquilo que diz. Temos medo por nós, e não pelos outros. O medo que nos atira para casa na hora do cuidado é o medo que nos bloqueia na hora da ação. O medo pode ser bom conselheiro, mas só o será por acaso, e ninguém precisa de um conselheiro assim.

5. O egoísmo é humano e legítimo. Todos pensamos no que o vírus significa para “mim”, por oposição ao que significa para todos. E o COVID-19 colocou-nos a nu. Expôs, como uma ferida, a nossa incapacidade de agir pelo bem comum, e as quezílias e contradições das nossas sociedades de pessoas e nações.

A esperança que existe é paradoxal. E a Igreja Católica, por exemplo, percebeu-o.

Ela, que vive do culto e da congregação, que até beneficia da superstição e de súplicas salvíficas, ordenou nesta Quaresma o encerramento dos lugares de culto, e apelou à reclusão dos fiéis. O que parece uma clausura e um fechamento é na verdade a mais íntegra caridade.

Connosco também é assim. Como um templo aberto na busca de um milagre, o egoísta destrói-se enquanto se tenta salvar a si mesmo. Como uma igreja racionalmente fechada, o altruísta salva-se enquanto tenta proteger os outros.

Cumpre resistir aos piores impulsos. A vida só se dá a quem se deu. É tempo de dar. Com humildade, discernimento e coragem.

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