Há coisa de dias...
As coisas não ficam à espera, no mesmo lugar, para que se retome onde se ficou. A minha mãe dizia que era assim mesmo, que a vida era como as ondas do mar, que se fazia de muitos altos e baixos,
Não tem duas semanas e a minha vida era simples, feita de hábitos corriqueiros e preocupações banais com o trabalho e as contas, com aqueles planos sem história a ver se o dinheiro dava para comprar um forro novo para os sofás e um ferro de engomar, o último fez curto circuito e pregou-me um susto.
E, quando olhava ainda mais frente, para os meses do calor, imaginava-me a fazer uns dias de férias com os amigos de sempre, estrada fora, a parar para dormir em alojamentos de baixo orçamento nesse país mais ou menos esquecido, onde se viam poucos turistas além daqueles cinco que se arrumavam todos dentro de um carro.
A minha vida, devo dizer, tinha pouco de exultante e dividia-se por áreas tão normais como cuidar da casa, alimentar os gatos e fazer-lhes festas, trabalhar e, às vezes, almoçar numa esplanada. Ou namorar os modelos novos de telefones – o meu tem cinco anos – e ver a roupa nas lojas. Aos sábados, metia-me no autocarro para ver a minha tia Conceição, que está confusa e muito velhinha.
E tinha na agenda todas as consultas e tratamentos do meu pai, que às vezes era preciso combinar a ver quem ia: ou eu ou meu irmão. Sem esquecer o veterinário do cão, que é a luz dos dias do meu pai, não quer que nada corra mal com o bicho, um rafeiro branquinho e beige e muito alegre, que corre entrada abaixo assim que nos avista.
Ao fim do dia, quando vencia a preguiça e o cansaço, arrumava a mochila para ir nadar ou ir ao ginásio, para não engordar e dormir melhor. Às vezes, ia só andar e, à noite, adormecia a ver uma série com um peso na consciência por me faltar o ânimo para ler os livros que se acumulavam nas estantes.
Na maior parte do tempo nem pensava no que era a minha vida, se era boa ou má, se podia ser melhor, mas sei que não me pesava, mesmo quando me chegava alguma angústia. De sermos já poucos, de ter saudades dos meus mortos, de ver o futuro mais curto e com menos oportunidades. E preocupava-me não ter tempo ou saber que, pelas probalidades, tinha cada vez menos tempo, é assim que se percebe o que é envelhecer.
Mais coisa, menos coisa, é de tudo isto que sinto falta e ao qual talvez não seja possível voltar quando se levantar a quarentena. As coisas não ficam à espera, no mesmo lugar, para que se retome onde se ficou. A minha mãe dizia que era assim mesmo, que a vida era como as ondas do mar, que se fazia de muitos altos e baixos, de muitos recomeços. E é a isso que me agarro a meio deste tsunami numa altura em que não se sabe quantos estragos, nem quantas vítimas fará.