Uma invenção chamada Portugal
A diferença entre a democracia e o governo de massas está neste distanciamento e nesta autoridade que Francisco [Rodrigues dos Santos] profanou e não teve a coragem de defender.
Vale a pena seguir a novela dos restaurantes acampados à beira da Assembleia da República.
O primeiro episódio é sensaborão. Nove empresários da restauração juntam-se, inorganicamente, à porta do Parlamento. Entre eles está Ljubomir Stanisic, um conhecido chef “jugoslavo”. Para efeito dramático, ninguém na série, nem os jornalistas, esclarece que a Jugoslávia se dissolveu. Manifestam-se em defesa dos seus negócios. Gritam umas palavas de ordem, reclamam uma audiência com o Governo, e a comunicação social cobre o acontecimento. Esta é a parte que até podia ter decorrido num país civilizado. Trata-se, claro, de um truque narrativo. Perto do final, o Governo declara que só recebe os “representantes do sector”, quando foi precisamente a falta de representação que os levou até ali. Espertos. A trama adensa-se.
No segundo episódio, os nove manifestantes começam uma greve de fome, vivendo simbolicamente no regime de pão e água a que o Estado de Emergência os condenou. O Governo continua sem os receber. A comunicação social lamenta pelo PS estar no poder, e não poder licitamente duvidar da bondade das suas intenções. Algumas celebridades de segunda linha, comovidas com as privações dos grevistas, comparecem para um gesto nobre e arriscado de activismo político: uma selfie com o chef.
No terceiro episódio, representantes de partidos políticos minoritários – o Chega, a Iniciativa Liberal e o CDS-PP – deslocam-se à tenda. O enredo foca-se em Francisco Rodrigues dos Santos, vulgo Chicão, chefe dos democratas-cristãos. A liderança, aos 30 anos, de um partido de direita conservadora português granjeou-lhe uma reputação de político precoce e destemido. O chef jugoslavo – que foi forçado a combater na Bósnia aos 14 anos – revela uma incompreensível dificuldade em reconhecer essas qualidades. Chicão sentou-se e ouviu: “não fales como líder partidário, fala a título pessoal”. Chicão assentiu. Em jeito de premonição do desastre, apresentou-se como “cidadão Francisco”. Nessa paradoxal condição, quis falar das propostas do CDS-PP. Até que Ljubomir Stanisic o interrompeu: “Se voltares a falar de um partido, vou ter de te pedir para saíres. Não há partidos, querido. Votámos na Assembleia - é nossa - e nós estamos com fome, fracos, por isso, não conseguimos ouvir falar dos partidos. Ninguém nos está a apoiar. Nem sei de que partido tu és, sinceramente, porque já estou a ver-te trocado”. O cidadão Francisco anuiu nesta humilhação, num silêncio cabisbaixo e tremelicante. Se for mais inteligente do que parece – e é-o necessariamente – aprendeu algumas lições. Desde logo, a de que existe uma boa razão para os líderes partidários não se despirem em público. Ao aceitar a “despartidarização”, ao renunciar ao seu papel – fatalmente partidário – de mediação entre o Povo e o poder político, o cidadão Francisco fomentou a confusão entre um e outro, e subscreveu as regras de um jogo anti-democrático. Atirou o poder à rua, nunca percebendo que esse poder era o seu. E na rua, querido, ficou claro que quem mandava era Ljubomir.
A diferença entre a democracia e o governo de massas está neste distanciamento e nesta autoridade, que Francisco profanou e não teve coragem de defender. Essa fraqueza diminuiu os eleitores do CDS e a sua representação política, subordinando-a aos caprichos previsivelmente diretos e ferozes da popularidade e mediatismo de Ljubomir. Francisco não sabe, mas deixou esta semana de liderar. Indiretamente, mas com proveito, demonstrou ainda que até a Guerra dos Balcãs faz melhor escola do que as juventudes partidárias, de que Francisco é hoje o mais notável produto e exemplar. Esse mundo fechado sobre si próprio nem sobre si próprio ensina.
O quarto e quinto episódios são menos interessantes. O chef foi entretanto hospitalizado, sofrendo sequelas da greve de fome. Nas redes sociais e nas notícias, lançou-se uma retaliação sobre os empresários. São acusados de auto-promoção. Surgem em fotografias nas redes sociais com bons carros, pratos sumptuosos, e champanhe. Ljubomir Stanisic terá tentado subornar um polícia com duas garrafas de vinho e outra de conhaque, tudo para consumar o crime de passar a Páscoa em Grândola. Num assomo de impiedade jornalística, foi-lhe ainda negada a clemência ou o benefício da dúvida costumeiramente estendido a ex-Primeiro-Ministros, presidentes de bancos e clubes de futebol. A oportunidade desta campanha tem um requinte discreto e antigo, e recorda aos indígenas as virtudes do apascentamento e da inacção.
A série está a terminar. Com o Natal, com mais confinamento, com os desmandos da fome, prepara-se para caducar, natural e poeticamente como a última folha de uma árvore despida.
Mas ficam as memórias. De um chef que não é chef, um Governo que não é Governo, um político que não é político, uma oposição que não é oposição, um Parlamento feito átrio de ecos, uma militância feita de Instagram. Os restaurantes, as pessoas que trabalham nos restaurantes, tornaram-se instrumentais. O seu sofrimento, real, converteu-se em pretexto de entretenimento: de uma disputa simbólica entre um cozinheiro mediático e o Primeiro-Ministro.
Certas coisas não se inventam. Portugal inventa-se todos os dias. E já leva quase 900 temporadas.