Madeira

14 denúncias não travaram a morte de Maria no Porto Santo em 2016

Relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica critica actuação das autoridades ao longo de 11 anos, o tempo em que perdurou a relação

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O 11.º relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) foi tornado público e expõe o que se passou ao longo do caso de homicídio da professora de ensino especial com 61 anos degolada pelo companheiro, profissional de hotelaria desempregado, no Porto Santo, em 2016.

Ao longo deste extenso documento que retrata os 11 anos do relacionamento iniciado em 2005 com comunhão de cama, mesa e habitação, mas com algumas interrupções, sabe-se que Maria Madalena viveu em comum, com Jorge, "durante mais de seis anos" e que ao longo desse espaço de tempo "foram iniciados 14 procedimentos criminais causados por comportamentos violentos" do então companheiro - à data do homicídio com 40 anos -, nos quais não só a docente "era visada", mas também "os restantes membros do seu agregado familiar e outros membros da comunidade".

Todos os inquéritos iniciados por agressões a Maria vieram a ser arquivados sem quaisquer consequências para Jorge - natural do Barreiro - excepto dois: um de 2009, por violência doméstica, que foi suspenso provisoriamente e arquivado em 2010 após cumprimento de obrigações; e outro de 2015, também por violência doméstica, no qual Jorge foi condenado em 2016, já depois do homicídio da professora.

A certa altura desta relação, mais precisamente no ano que antecedeu a morte de A [Maria], por motivos relacionados com ciúmes, toxicodependência e álcool por parte de B [Jorge], começou a ser frequente este dizer a A, nas repetidas discussões que tinha com ela, que a iria matar. Relatório da EARHVD

Por isso, e no âmbito deste quatro de violência doméstica, o caso em análise mostra "condescendência para com o comportamento" de Jorge, a "falta de proactividade na investigação criminal e a inconsequência da acção judiciária", que resultaram na desportecção de Maria face ao homicida, que "foi fortalecendo um sentimento de impunidade".

Tendo em conta igualmente que o neto da vítima presenciou muitas das agressões, a EARHVD também não esquece que "para além dos contactos havidos no decurso dos procedimentos de proteção e promoção dos direitos, primeiro pela CPCJ e depois, em 2010, pelo tribunal, não existem também, na informação recolhida, referências a qualquer apoio prestado a esta criança ou a medidas efectivas para preservação da segurança e promoção das condições adequadas tendentes ao seu desenvolvimento saudável", apesar de Maria ter apelada "reiteradamente as suas preocupações quanto à segurança do neto no contexto do ambiente de violência existente no agregado familiar".

Esta criança presenciou agressões de que a sua mãe e particularmente a sua avó foram vítimas, incluindo as que acabaram no homicídio, viu objectos e equipamentos que utilizava serem destruídos (...) e foi alvo de ameaças graves (...). Não só não foram avaliadas as consequências psicológicas destes comportamentos, de que foi vítima, como não lhes foi dada a devida relevância criminal. Relatório da EARHVD

Sentiu-se desprotegida

A professora de 1.º ciclo "não aderiu ao plano de segurança que, em 2010, lhe foi proposto pelos serviços da Segurança Social, que implicava o seu afastamento, tanto do local de residência como do local do exercício profissional", pode ler-se no relatório, que critica o facto do contacto deste serviço ter sido resumido "a uma conversa telefónica seguida de um encontro presencial", numa altura em que Maria se ausentara do seu local habitual de residência e imediatamente antes de Jorge dali também se ter ausentado durante cerca de quatro anos.

"A falta de assertividade da intervenção desencadeada após as intervenções criminais e a proposta que lhe foi feita de afastamento do seu local de residência e de trabalho, poderão ter transmitido a A [Maria] um sentimento de desprotecção. Ao contrário, a proactividade na recolha de provas e a firmeza na aplicação de medidas de coação, por forma a garantir a contenção e o afastamento de B [Jorge] (atendendo, em particular, às características geográficas do território em que ambos habitavam), permitiriam proteger A [Maria] e criar condições para que viesse a aderir ao apoio à reorganização da sua vida pessoal, familiar e profissional, sem ter de abandonar a casa, o trabalho e a região onde residia", indica.

518 mulheres e 705 crianças vítimas de violência doméstica acolhidas na Madeira

Nos últimos 18 anos, as três Casas Abrigo da Madeira já acolheram mais de mil vítimas de violência Doméstica. Os dados foram revelados pela coordenadora da Equipa de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica na Comissão Especializada de Saúde e Assuntos Sociais, durante a audiência, requerida pelo PSD, que teve por finalidade ‘esclarecer questões Sobre as Políticas de Combate à Violência Doméstica’.

O homicida foi condenado a 20 anos de prisão e indemnizou a família da professora em quase 138 mil euros.

Ciúmes, toxicodependência e álcool

A certa altura desta relação, mais precisamente no ano que antecedeu a morte de Maria, "por motivos relacionados com ciúmes, toxicodependência e álcool por parte de Jorge, começou a ser frequente este dizer à vítima, nas repetidas discussões que tinha com ela, que a iria matar.

No dia da sua morte, antes das 16 horas, o homicida viu a sexagenária sair da esquadra da PSP do local onde residia acompanhada de advogado e suspeitou que esta tinha ido apresentar mais uma queixa contra si. Após esse acontecimento, no interior da cozinha da residência de ambos, depois de Maria ter chegado a casa, no decurso de uma discussão e por razões não concretamente apuradas, Jorge agarrou Maria pelo cabelo, colocou-a de joelhos e desferiu continuamente diversos socos na boca desta, pelo que Maria começou a gritar, pedindo ajuda.

Nessa altura, consta no relatório que, por ter ouvido ruídos, o neto acorreu em auxílio da avó, mas assim que se deparou com a situação saiu a correr pela janela do seu quarto para pedir ajuda. Dirigiu-se a um café próximo, dizendo "Ajudem-me. Ele diz que vai matar a minha avó”, regressando de seguida acompanhado por um vizinho que ali se encontrava.

Quando este entrou no quintal da habitação, ouvindo os gritos de Maria, questionou em voz alta o que ali se passava, tendo de seguida Jorge aparecido à porta da entrada da cozinha, trazendo a vítima agarrada pelo pescoço com o braço esquerdo, empunhando na mão direita uma faca de cozinha.

Perante as ameaças de B [Jorge], encostando a faca no pescoço de A [Maria], o vizinho saiu do quintal, aguardando na rua a chegada da PSP. Enquanto isso, B [Jorge] desferiu vários golpes com a faca em A [Maria], sendo que um deles a atingiu na garganta, provocando-lhe a morte. À chegada da PSP ao local, o corpo de A [Maria] encontrava-se em decúbito dorsal, junto à porta de acesso à cozinha, com múltiplas lesões traumáticas, de natureza cortante e corto-perfurante, dispersas na face, pescoço, tórax e membros superiores, tendo a morte decorrido da secção completa da veia jugular interna direita. Relatório da EARHVD
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