Do exercício do poder
1. Disco: não sou dos maiores entusiastas de Paul McCartney, mas este “McCartney III” merece ser ouvido de fio a pavio. O disco foi todo gravado durante o lockdown de Março. O ex-Beatle consegue, à vez, afastar-se do som dos Fab Four e, em simultâneo, manter pontes para o último período da banda de Liverpool. É “rock”, é “rock-pop” do bom o que McCartney tem para oferecer. Para ouvir muito.
2. Livro: Não gosto muito de ler edições brasileiras, mas “O Último Verão Europeu - Quem Começou a Grande Guerra de 1914?”, de David Fromkin, não tem edição no nosso “português”. É no passado que se devem colher lições para o presente, de modo a evitar que a história se repita no futuro. Este livro de Fromkin é uma fantástica lição de história que pretende demonstrar que o início da Grande Guerra não foi, obrigatoriamente, consequência do assassinato de Franz Ferdinand, em Sarajevo, mas sim o resultado de um amontoar de factores que se foram acumulando, ao longo de vários anos, e que se prendem com questões económicas, de agitação social, nacionalismo, colonialismo e militarismo.
3. O que vai abaixo resulta de várias conversas tidas com empresários de ramos diferentes, com amigos, com especialistas em várias áreas. Ouvi, participei, pensei e conclui, a partir de pontos de vista, muitas das vezes, contrários.
É, obviamente, polémico.
Mas como é o que sinto a mais não sou obrigado.
Tenho a certeza da oposição de muitas e consideradas pessoas. É tempo de Festa e não me apetece alimentar esta angústia que me forma uma bola no fundo da garganta. Quem me conhece, sabe como estas coisas me causam sofrimento.
Ao contrário de muitos, não endeuso o Governo Regional na gestão dos tempos por que passamos embora, no início, lhe tenha dado o benefício da dúvida. Houve coisas que aplaudo, coisas que correram bem, outras que nem tanto e algumas mal.
Onde está a lista de consultas, cirurgias e exames adiados devido à pandemia? Não está e só depende do GR a sua divulgação.
Onde está a justificação para o aumento do número de mortes não COVID em relação aos anos anteriores? Não existe e só depende do GR a sua divulgação.
Onde estão os apoios significativos às empresas, que são quem gera emprego, uma vez que já vamos em quase 20 mil desempregados? Estão espalhados numa data de programas cheios de alíneas e artigos, verdadeiros monumentos à burocracia. Apoios que, quando usados, inibem o concorrer a outros, para além de se limitarem a facultar o recurso ao crédito bancário (endividamento) onde são exigidas garantias pessoais aos empresários.
Onde estão os apoios, efectivamente a fundo perdido, sem condicionalismos? Não estão.
Porque não revela o Governo Regional a lista dos apoios já atribuídos e a quem? Seria medida transparente e ficaríamos todos a entender quem recorreu a apoios públicos (logo, de todos nós) para fazer face à crise. Sem esta divulgação, nunca conseguiremos saber o quem, como, quanto e porquê do modo como os apoios são concedidos.
Onde está a isenção da TSU, a redução do IVA em 30%, medidas que deixavam mais dinheiro no bolso das empresas, para fazerem face a esta desgraça, e no bolso das pessoas, de modo a incentivar o consumo? Nada.
A maior parte das nossas firmas são micro, pequenas ou médias com muito pouca liquidez. É essa uma das suas características. Vivem ao dia ou, no máximo, ao mês. Previsivelmente, o processo foi “à portuguesa”, a chamar por papéis e declarações, modelos e certificações. Quando o que se exigia era agilização, o que tivemos foi a costumeira burocracia que nos tolhe sempre os movimentos. O Estado, o Governo, devia ter sido expedito na ajuda e, mais tarde, preocupar-se em investigar, tudo muito bem investigado, de modo a punir os aproveitadores. Como sempre, agiu desconfiado de tudo e de todos. Como se se estivesse a ver ao espelho.
Trancar a porta a cadeado e não deixar o problema entrar, é simples. Reprimir é o modo mais fácil de governar. Agora, ter a sabedoria do meio-termo, não está ao alcance de qualquer um.
Ao longo destes meses, as hesitações foram mais que muitas. Diziam uma coisa que se apressavam a desdizer mais tarde. O que hoje era assim, amanhã era assado. Isto deixa uma má percepção das capacidades de liderança.
Vi muito pouco rigor científico, pouca coragem e falho mérito. Agora, isso vem tudo ao de cima. Tivemos sorte, até aqui, porque trancámos o “galinheiro” deixando a “raposa” de fora.
Sou exigente, muito exigente com o modo como sou dirigido. Não aceito desculpas, nem desculpabilizações. Ninguém obriga ninguém a ser governante, logo quero “the best that money can buy”, porque sou eu que pago, porque somos nós, contribuintes, que pagamos. Não há tempo útil para a tomada de decisões, há boa governança sustentada em cientificidade e na rejeição do “achismo”.
É o nosso futuro que está em causa. Desenganem-se os que pensam que “vai ficar tudo bem”. Já pensei assim mas há muito que mudei de ideias. Não vai ficar tudo bem e há culpados para isso. Cá e lá.
Estes terríveis momentos são a ponta do icebergue e não vai acabar com o milagre da vacinação.
Tenho bem presente o momento em que comecei a pensar, sobre tudo isto, na totalidade. Foi com um simples post no Facebook do meu grande amigo José Júlio, em Março, em que escrevia: “a pandemia Covid 19 é um grave problema, mas tem 40% de saúde pública e 60% de economia. A economia vai matar mais do que a pandemia. Espero estar enganado”. As interligações entre as diferentes coisas que nos prejudicam, não podem ser menosprezadas. Não se pode pensar soluções sem pensar todas as determinantes e variáveis que nos afectam. Estima-se que 70% destes factores estejam fora do sector da saúde. Factores sociais e económicos como a pobreza, o emprego, a posição socioeconómica, a exclusão social; ambientais como o “habitat”, a qualidade do ar e da água; o ambiente social em que vivemos; os estilos de vida de cada um; o acesso à educação, à saúde, aos apoios sociais, aos transportes, ao lazer e a economia, são tudo áreas que serão afectadas por esta crise.
O José Júlio tinha toda a razão. Se o que escreveu peca por algo, é por defeito.
Mesmo que matemos o “bicho”, que ele desapareça de repente, vamos ficar com uma economia de rastos, com empresas a falir umas atrás das outras, com milhares de madeirenses sem emprego. Não é preciso muita imaginação para ver o que aí vem.
No momento em que escrevo estas linhas, há empresas que têm de escolher entre pagar a segurança social e impostos ou pagar o subsídio de natal aos seus funcionários. Neste preciso momento, há empresários com o credo na boca, angustiados, para conseguirem cumprir com as suas obrigações. Há trabalhadores que não puderam proporcionar, aos seus, um bom Natal, mas o Natal possível. Aqueles que podiam criar as condições para que isto não acontecesse, mesmo que à revelia da lei, nada fizeram… ou fazem muito pouco.
É nestas alturas, nestas condições, que os líderes se destacam dos chefes. Precisamos de liderança, mesmo que esta seja exercida contra preceitos legais que não foram criados a pensar em tempos como este.
4. Com um ano que acaba tão estragado, é difícil imaginar como o ano que aí vem possa ser pior. Mas pode. Temos de fazer tudo para que tal não aconteça e encetar o caminho de uma recuperação que urge e da qual pouco se vê.
A todos, os meus desejos de que se possa enterrar definitivamente este 2020 e que venha um 2021 o melhor possível.