Lições do ano cruel
Não devemos esquecer 2020 se é que queremos ter um futuro diferente
O ano foi cruel, desfez sonhos e tirou o futuro a muitos. Mas não podemos desistir de lutar. Há um vírus para vencer e uma crise para ultrapassar. Precisamos uns dos outros como nunca. Por isso, deixem-se de amuos e esquisitices. Primeiro está o bem comum e, por estes dias, é a população da Ponta Delgada e de Boaventura que mais necessita de apoio efectivo e desburocratizado, de uma palavra honesta que incentive à reconstrução e de empenho colectivo. Cabe aos decisores ser ágeis e vigilantes, a tomar nota dos bons conselhos e a corrigir o que manifestamente estrangula o curso normal das águas. Para mais surpresas basta as que estão garantidas pela natureza.
O ano comprovou que o inimigo imprevisível nem sempre é um gigante. O microscópico vírus que nos trocou as voltas e mudou em menos de um ano hábitos instalados durante décadas é a prova de quão frágil é a nossa existência, por mais robustos que possam parecer os nossos escudos, sistemas e refúgios.
O ano foi fértil em contradições. Em parte derivadas de realidades não experimentadas e testadas, mas quase sempre devido à ausência de bom senso e de princípios. O improviso fez o resto mas ficamos com uma manual de instruções para usar em situações severas.
O ano fica a dever à lucidez, com os que pedem competência a serem alvo da ira dos cínicos em vários momentos dialéticos, por vezes, de forma inacreditável. Que raio de gente é esta que prefere valorizar a inércia, desculpar o erro e optar quase sempre pelos que falham do que perceber a grandeza dos melhores propósitos? Subam a fasquia e a exigência, mesmo que por instantes vos possa dar jeito nivelar tudo por baixo.
O ano consagrou o teletrabalho, que aliado à tecnologia, introduziu uma nova de estar no mundo laboral. Hoje estamos quase sempre prontos a qualquer hora e disponíveis para o impossível. Somos incansáveis e intervenientes, quase sem sentir de imediato a sobrecarga, à qual importa dar a devida compensação e atenção às debilidades. Há escravos deste novo tempo, alguns com sequelas irreparáveis.
O ano levou ao colapso de quem não tinha poupanças nem estava prevenido para o inesperado. Mas não só. Quem não tinha estofo para lidar com a agressividade do infortúnio está agora à beira de um ataque de nervos, de depressões ou de solidões que exigem cura e presença. Quem julgou que o sucesso de sectores sempre em alta era um dado adquirido equivocou-se. Convém começar a educar de outra forma pois em muitos momentos foi notória uma deriva generalizada.
O ano deixa claro que não devemos subestimar culturas e os expedientes que outros já seguiam. Quem diria que o uso da máscara, que a desinfecção das mãos, que a observação da etiqueta respiratória, que o apelo ao respeito pelo distanciamento social e ao controlo dos afectos faria de nós sucedâneos dos que noutras paragens já o faziam?
O ano mostrou que os governos aproveitaram um tempo excepcional para limitar direitos, liberdades e garantias. Ficou evidente a predilecção para controlar, para subestimar a responsabilidade individual e para impor sem pudor, por vezes ridicularizando a cidadania Que haja também remédio para estes tiques ditatoriais.
O ano acaba com um generoso optimismo que pode ser perigoso, se motivar a que sejam retomadas práticas nefastas. Apesar das vacinas é bem provável que o futuro não seja uma imitação daquilo que vivemos quando éramos felizes e nem sabíamos. Viver em sociedade vai implicar observar cada vez mais regras, mas acima de tudo respeitar orientações em nome da saúde pública.
Foram muitos os que não puderam estar connosco em vários momentos significativos deste 2020. Porque partiram, porque foram obrigados a ficar longe, porque estão confinados. Custou mas um dia havemos de voltar a festejar a coragem e a resiliência, a criatividade e a dedicação às grandes causa. É esta esperança que este ano que tanto nos questionou também ajudou a consolidar.