Um temporal como os de antigamente
O meu irmão repetiu a expressão várias vezes enquanto se preparava o almoço de Natal, lá, na velha casa do Laranjal. Na rua estava um temporal da infância, daqueles de encher a ribeira e derrubar os muros da fazenda, tivemos muitos assim. E lá por cima quando se mete de chuva é de ter respeito. Fica escuro e feio, os eucaliptos da frente parecem maiores, dá a impressão de estarmos sós e desamparados.
Em miúdos víamos a chuva da janela, a minha mãe não nos deixava sair e nós inventávamos mundos imaginários debaixo da mesa do quarto do engomar. Umas vezes era o fundo do mar, noutras fazíamos barcos e aviões com jornais antigos, mas as más notícias não nos tiravam o sono, só o barulho dos trovões. Isso dava medo, as desgraças dos dias de temporal só apoquentavam a minha mãe e as minhas tias.
Naqueles anos, quando nem à escola se podia ir, os jornais traziam as histórias de casas levadas pela ribeira, de pessoas arrastadas ou soterradas em derrocadas. Lembro-me da minha mãe levantar os olhos do bordado, já preocupada, o tempo assim não era bom, trazia destruição. Houve um ano em que se soltaram pedras, um pinheiro caiu no terreno ao lado e o muro atrás da casa inchou de água e caiu em cima do terraço.
A minha mãe mandou-me passar esse sábado a casa da minha tia Alice, que ali, entre o entulho e as pedras soltas no caminho não era seguro. E não me pareceu má ideia ficar com a minha prima Ana, ter todas as atenções e ir de carro à missa, mas as crianças têm essa extraordinária capacidade de tornar o estranho em normal, de fintar a realidade e, na minha infância, os adultos sabiam esconder os problemas, tinham esse poder mágico. E é por isso que até as doenças são boas memórias.
As pedras de granizo saltavam no quintal neste Natal, este dia de temporal como os de antigamente quando, nos telefones, começaram a cair as notícias que, longe do Laranjal, do outro lado da ilha, as pessoas viviam momentos de aperto, de água a atravessar casas, a arrastar carros e a levar pinheiros e entulho por caminhos e estradas naquele calvário que, nos últimos anos, não nos tem dado paz: chuva, enxurradas e a manhã seguinte de lama e destruição.
O dia seguinte de desalento – de gente que chora e parece perdida – e depois, não se sabe bem de onde, ganha fôlego, limpa a lama, refaz-se e segue em frente. Perdi a conta às vezes que vi pessoas encostadas à porta, de braços caídos, naquele desespero de quem vê tudo levado pela água e ainda assim está de pá na mão, a mexer, a limpar. A quem se juntam outros, vizinhos, família e com energia começam de novo.
Ainda que se revoltem contra a câmara e o governo, que falem do medo que tiveram e do quanto lhes custou fugir da enxurrada ou da sorte de estarem vivos, lembram-me a minha mãe e o meu pai naquele sábado que me mandaram para a casa da minha tia Alice, enquanto limpavam o entulho e se preparavam para fazer como se faz aqui: continuar e continuar de pé.