Câmara de Lobos, a Igreja do Carmo e os Sinos do Pecado
Ruído, muito ruído, ruído ensurdecedor. Fonte da poluição: a igreja. Há muito que dura a contestação. Há muito que os sinos de bronze e martelo continuam desrespeitosamente a martelar os tímpanos dos residentes durante todo o dia, tirando-lhes o sossego e o descanso, prejudicando-lhes a saúde com o objectivo desnecessário e fútil de assinalar as horas.
Hoje em dia, quer em casa, quer no trabalho, mesmo no carro, as pessoas vivem cercadas de telefones, telemóveis, computadores, relógios, rádios, tablets, televisões, todos indicando a cada instante o inexorável passar do tempo. Sinos a cem decibéis? Não se aperceberam ainda de que a poluição sonora é um flagelo? E o desassossego continua, ainda com mais veemência! Pois tocam para assinalar as horas, tocam a chamada para as missas, tocam durante a missa, tocam para os enterros, e então quando há festas religiosas e procissões tocam «ad nauseam». Não há muito aconteceu que começaram a tocar às 14 horas e às 18 ainda tocavam com intervalos mínimos, talvez para não aquecer demasiado os martelos. Isto é aberrante. Liberdade religiosa sim, liberdade de incomodar com centenas e centenas de badaladas durante todo o dia, isso não, A liberdade que oferece a uns o direito de fazerem ruído acaba com a liberdade de outros que se vêem privados do direito ao silêncio, património imaterial da humanidade. O que é deveras inquietante é que as pessoas aceitem assim, passivas e curvadas, que alguém possa outorgar-se o direito, para o qual ninguém lhe deu mandato, de lhes criar este desassossego contínuo e gratuito. Alguns alegam a tradição. Mas há tradições ridículas e até criminosas. Pense-se nos quase trezentos anos que durou a Inquisição. Tornou-se tradição mandar para a fogueira quem ousasse pensar fora dos cânones. «Mutatis mutandis», estamos no século XXI. Felizmente vivemos num estado laico e de direito e não na Idade Média, num estado religioso e fundamentalista. Há muito que dura o incómodo, há muito que se reclama, mas em vão. Recordo-me de alguém que se queixava junto do senhor bispo emérito e que ouviu a seguinte resposta: “Se vive longe da igreja, não ouve os sinos. Se vive próximo, habitua-se de tal maneira que deixa de os ouvir!” É um raciocínio esdrúxulo. Reclamei, já há muito tempo, junto do senhor presidente da câmara, também emérito, e respondeu-me: “Sabe, eu com padres não me meto! A última vez que me aborreci com um deles, no dia seguinte tive um acidente de automóvel!” Uma resposta esdrúxula.
Num artigo recente neste jornal sobre o assunto, o grande argumento era que a igreja e os sinos já lá estavam antes dos residentes queixosos. Pasme-se: que sofram, nós chegámos primeiro! Perguntei a um pequeno grupo de jovens que frequentam a escola, que fica nos arredores da igreja, se não eram incomodados. “Sim, sim”, responderam, “mas isso é bom, enquanto tocam os sinos não se ouve nada do que o professor diz.” Um raciocínio claro, demasiadamente óbvio, de senso comum, mas isso, sendo o que há de menos comum, ninguém entende. Voltaire, grande filósofo, admoestava com um certo cinismo a nobreza decadente e abusadora dos seus privilégios: “O povo deve ser guiado, não instruído. Se a populaça se mete a raciocinar, tudo está perdido.” Já o nosso poeta, Pessoa, se lamentava, mas resignado: “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há.” Destruir o silêncio de forma abusiva, destruir o silêncio, património imaterial da humanidade, o silêncio, bálsamo para o frenesim imparável da actividade humana, destruí-lo, é pecado.
Eduardo Anselmo de Freitas Gonçalves