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A sorte dos jovens

O único vendedor de raspas de Lisboa

Não posso dizer ao certo onde nem quem, que é para não criar sarilhos a quem vou louvar. Foi algures nas Avenidas Novas. Vi uma tabacaria/casa de sorte. Tentado por jornais e umas mariquices, aproveitei para comprar uma graça para umas crianças.

Quando perguntei ao senhor quanto custavam as raspas, respondeu que eram dois euros, e que eu era madeirense.

Logo no quanto custa! Nem ‘êro’ eu tinha dito. Adivinhando o meu pânico, o mago explicou o truque:

‘Raspas! Se ler aqui, não diz raspas, diz raspadinhas. Só vocês dizem raspas’, acrescentou, disfarçando mal o triunfo pelo país inteiro ter passado naquele estabelecimento. Com receio de que rebentasse de orgulho, provoquei-o:

‘Só nós?’

‘Só vocês!’ - confirmou, aliviadíssimo - ‘Recebo cá pessoas de todo o país. Raspas, Só na Madeira se diz!’

Enquanto pedia e pagava, continuou desconfortável com o meu espanto. Com voz de negócio e modéstia diplomática, justificou-se de novo:

‘Há aqui um médico muito conhecido, então tenho muita gente das ilhas. Do Sul também. Do Norte vêm mais ao museu’.

Para mim, que já vinha estarrecido pela atenção ao regionalismo, foi como um gancho a seguir ao directo. O homem importava-se, de verdade, com as fortunas e os azares destas transacções efémeras. Encantado, comprei muito mais raspas do que queria. A caixa registadora tilintou. Era a campainha para o último round. Para garantir que me estendia, despediu-se com um ‘Viva a Madeira!’. Enterrado em dívidas, saldei-as como pude: mentindo, com um ‘Viva a Lisboa!’ pessimamente amanhado. O que eu queria, todavia, não era retribuir gentilezas, nem pagar dívidas com tristezas. O que eu queria era imitar-lhe a grandeza, e garantir que naquela esquina ficava o único vendedor de raspas de Lisboa.

A vida dos pequenos

Um trimestre de aulas remotas ou a meio gás, sem saídas, festas, desporto, viagens, todos os acessórios críticos ao estudo universitário. Duas semanas de especial cuidado antes do teste feito em Lisboa – um pontapé, vá lá, que prometi isolamento mas não jurei castidade – que é para não queimar o Natal de quarentena. Negativo. Alívio. Voo. MadeiraSafe. Estudante? Confinamento profiláctico até ao segundo teste, está bem? Está bem. De máscara em casa. Sempre há janelas, sempre há vista, sempre dá para circular, é uma sorte. Os pais incentivam a quebrar protocolo – ‘só uma vez, parecemos tontos, teu primo vai’ – , mas resiste-se. Ainda faltam três dias. Acumulam-se os deveres e recados para o desconfinamento. No Instagram não há inocentes. A Cláudia anda na praia, o Castro já anda nos treinos, o Freitas fez os anos na mesma. O Gonçalo tem mais um ano, trabalha, registou como não residente, anda na poncha como se não fosse nada. É um turista em casa com os pais. O Santa Marta é que fez bem, alugou uma casa. Era o que faria se pudesse. Não posso. Saudades deles. Ataque de FOMO, “fear of missing out”, medo de ficar de fora. Devia desinstalar esta trampa. Notificação. Madeirasafe: teste daqui a dois dias no Hospital Nélio Mendonça. Mais dois dias de fora, no claustro do mosteiro dos bem-comportados, onde cada um se sente o último monge. Nas notícias, compreensivelmente cansado, Miguel Albuquerque exaspera-se: ‘Têm de esperar pelo segundo teste (…) coitadinhos não podem esperar 5 ou 7 dias. Alguém vai morrer? Se o estudante vai para casa e está isolado até ao segundo teste há algum drama nisso?”.

Há na juventude algo de evasivo. Tendo todos sido jovens, resistimos a reavivar essa sensação, como se daí brotasse um tipo específico de dor. Mas não é difícil. A juventude julga-se imortal, mas sabe-se efémera: julga que nada lhe acontece, mas sabe que não julgará o mesmo por muito tempo. Sente, instintivamente, que paga a fava dos dias do vírus, e alimenta - como não alimentará? - pensamentos negros, onde resiste a trocar instantes invulneráveis seus por suspiros esforçados e contados de outros. Vai morrer alguém? Vai. Cada dia por viver é um dia dado à morte. Ou assim parece. E custa. É sábio o adágio do “Deus nos livre do que a gente aguenta”. Mais sabendo que há tantas maneiras de ser ilegalmente responsável como as há de ser legalmente contagioso. Por alguma razão não meteram os estrangeiros nisto. Daqui para a soleira da porta, para a vida de sempre, para os amigos, os jogos, os namoros e os copos, para o gosto travesso da transgressão, vai a distância de um juízo, que responde melhor à responsabilidade individualmente presumida do que à culpa colectivamente acusada.

No cinema e na literatura respeita-se esta liturgia. Crê-se no eco e na eternidade dos dias curtos, dramáticos e sôfregos da juventude. Na vida a sério, na vida “real”, desprovida de misticismo, fantasia, e até emoções e memórias, é suposto que nada disto importe. Mas importa. Dos jovens pedimos, aos seus olhos, o maior dos sacrifícios. Deles esperamos que suportem, sem solicitação, a parte de leão dos riscos nas semanas de todos os perigos. Parece perverso que só respeitem quem os respeita, mas são assim porque cedo aprenderam, como nós, que só isso é respeitável. Respeitemo-los, pois, e comportemo-nos como pedimos que se comportem. O resto vem daí. E o resto, pela Madeira, tem de vir. Feliz Natal.

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