Crónicas

Assim começa o mal

Um surto de indignação percorre a pátria, com os políticos e os media de repente “acordados” para o caso do cidadão ucraniano torturado e morto às mãos do Estado português, num país de Direito democrático e da União Europeia. O essencial da história é conhecido e de cada vez que a evocamos ou falamos dela, somos assolados por um rubor de vergonha. Só alguma comunicação social não deixou que Ihor Homenyuk — agora recuperou o direito ao nome, antes era só “um ucraniano” — tivesse no esquecimento a sua segunda morte. Quando a entrevista da esposa fez o caso regressar ao primeiro plano da agenda mediática, foi penoso ver o malabarismo verbal do Presidente a justificar nove meses de silêncio, mais a patética entrevista do ministro das polícias a vitimizar-se, recusando as devidas consequências políticas pelo ocorrido no SEF, respaldado por todo um cortejo de cumplicidades e silêncios que permitiram chegarmos a este escândalo de violência como prática política. Claro, o que se seguiu de gestos esfarrapados do governo para com a viúva — cartas e indemnizações, tarde e a más horas — foi só porque, aferrado ao lugar e perante a indignação geral, o ministro viu-se obrigado a acionar o “botão de pânico” da sua sobrevivência política, qual fiel apparatchik socialista do chefe, pois só por ele aceitará, de espinha bem vergada, ser demitido. Vem nos manuais: quando os jornais ou a oposição pedem a cabeça de um governante, nunca o responsável máximo o demite — pelo menos nos dias mais próximos, e nunca sem o devido elogio fúnebre.

Embora não versando uma problemática semelhante, ocorreu-me o romance de Javier Marías, “Assim Começa o Mal”. Em pano de fundo da narrativa está o pós-franquismo e a necessidade de, revisitando o passado e os factos da ditadura, alguns dos personagens se confrontarem com a importância de esquecer, ou perdoar, para viverem apenas o agora da liberdade. Como se a própria sociedade espanhola não quisesse mais ser atormentada pelo fantasma de Franco, deixando que o esquecimento fosse a pouco e pouco engolindo o passado e, para trás, as recordações dolorosas. A verdade do Estado tem muitos segredos e aquilo a que não se assiste ou não se pode provar, acaba sendo só um rumor de vozes. Por isso, diz Marías através do protagonista, quando a gente “renuncia a saber o que não se pode saber, talvez então, parafraseando Shakespeare, talvez então comece o mal, mas em compensação o pior fica para trás”. É isso mesmo: o pior (para o governo) já passou, e nunca saberemos o que de facto terá mesmo ocorrido naquela Sala de Detenção Temporária (o poder é especialista em nomes: quando mais sinistro, mais eufemístico). Passado é passado: ocultado pelo Estado, ou simplesmente recalcado pela memória fugaz do presente, é então aí que o mal começa como mal a vir, mal por vir, a injustiça não redimida a fazer germinar mais injustiça, e o poder a ilustrar, cada vez mais sem vergonha, a sua própria amoralidade.

O que é o mal? Não é numa suposta “natureza” ou “metafísica” que o devemos pensar, como bem ilustrou Hannah Arendt com o conceito de “banalidade do mal”. Antes — a vontade como legalidade à luz de uma consciência doente — será o “demasiado humano” da normalidade, homens comuns agindo só por convicção burocrática, sem escrúpulo moral ou empatia para com o seu semelhante, bem anichados no poder político envolvente, os valores e o direito em eclipse total.

Como vírus silencioso que alastra, assim começa o mal.

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