Bem perto da azáfama da feira, no que é hoje o Largo do Pelourinho, atravessando a ribeira das Casas - hoje de Santa Luzia - para ocidente, entramos no território onde se erguiam os primitivos açougues do Funchal. A toponímia sobreviveu, e ainda hoje lá está a travessa dos Açougues. Quem por ali passasse em 1491, teria alguma probabilidade de encontrar a concessionária do espaço, encarregada pela Câmara do Funchal de gerir a sua construção, manutenção e boa operação.
A “mulher de Mestre Guilherme”, como surge na documentação, casada com um conhecido mercador e mestre de açúcar da vila do Funchal, conseguira a concessão daquele espaço por tempo de dois anos, com a possibilidade de o renovar ao fim desse prazo. Voltamos a encontrá-la uns anos depois, já viúva, administrando plantações de açúcar que em 1494 produziam uma quantidade estimada de 150 arrobas, preparando-se para expandir a produção com novo canavial.
Algumas décadas depois, temos conhecimento de outra açougueira de renome, Joana Falcoa. Entre as décadas de 1520 e 1540 foi a Imperatriz dos açougueiros da capital atlântica, aquela que regia todos os outros. Vendia e cortava, por licença camarária, carne de vaca, carneiro e porco. Os seus serviços eram sobretudo requisitados por ocasião das festas do Corpo de Deus e de Santiago Menor, padroeiro da cidade, nas quais, além da extravagante procissão de que já falámos, se faziam corridas de touros, vaquejadas e outros jogos, geralmente à frente da Sé, à época um terreiro aberto, que eram depois consumidos pela população. Quem sabe não será esta a origem da tradição da espetada nos arraiais?
E quem oferecia os 5 ou 6 touros que se corriam nas festas era, precisamente, Joana Falcoa, conseguindo, assim , condições privilegiadas no corte da carne durante a festa - Rainha do gado e Imperatriz dos açougues.
Este gado tanto era criado localmente, como importado, do Norte de África e das Canárias. Já nos anos de 1470 nos cruzamos com outra ganadeira e empreendedora de renome, Clara Esteves, moradora para os lados de Santa Catarina, e dona de uma fazenda de gado onde hoje se ergue o bairro da Nazaré. Também as fazendas de gado de Joana Falcoa haveriam de se situar nos actuais limites de São Martinho, então ainda parte da gigantesca freguesia de Santo António, que incorporava desde parte de Câmara de Lobos ao Monte, e onde ainda subsistem topónimos como o Curral Velho, que já era velho no século XVI, ou a enigmática Quinta Falcão que, por coincidência ou não, talvez não ande longe das terras da primitiva fazenda da Falcoa.
Joana Falcão parece ter enviuvado no fim de 1527, após uma atribulada viagem do marido Gonçalo Novo - o Imperador - a Safim, para tratar do abastecimento de gado para a Madeira, passando a gerir o negócio sozinha. No Corpo de Cristo de 1531, é a única a ter licença para cortar carne antes da festa, e em julho do ano seguinte é ela que manda buscar os touros para as grandes comemorações da chegada à cidade do capitão do donatário Simão Gonçalves da Câmara, o Magnífico, e da festa do Anjo - a famosa festa do Anjo Custódio de Portugal, instituída pelo Papa Júlio II a pedido de D. Manuel, hoje coincidente com o dia da Nacionalidade, mas que então se comemorava no terceiro domingo de Julho.
Em 1546 cruzamo-nos pela última vez com o nome de Joana Falcoa. Em fevereiro daquele ano, por ocasião da grande fome de que a ilha padecia, envia um navio às Canárias para buscar gado, dispondo-se a vendê-la até na Quaresma, se preciso for. A vocação solidária desta empresária renascentista já havia manifestado, também, quando tomara à sua guarda o pequeno órfão Diogo, deixado à sua porta. Por fim, em abril daquele ano, oferece os seis touros da praxe para se correrem durante a festa do padroeiro Santiago.
Três mulheres empreendedoras no abastecimento de carnes ao Funchal, mas mais haverá, certamente, cujos nomes a história infelizmente não guardou.
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