Largo do Pelourinho, onde esteve a primeira feira do Funchal (PESP / Wikimedia CC-BY-SA 4.0)
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Largo do Pelourinho: As mulheres dos Ofícios

Um pouco por toda aquela zona reinava a azáfama do comércio e da indústria artesanal, e várias classes de mulheres trabalhadoras adquiriam e exerciam algum do poder que noutras esferas lhes estava vedado

A História dos lugares sempre se fez com as mulheres, e o Funchal não é excepção. Com o início do povoamento chegaram não só lavradoras e fidalgas, mas também o que chamaríamos hoje empreendedoras e gestoras; e, claro, as vendedeiras, peixeiras, regateiras, padeiras, fanqueiras, fiandeiras, forneiras e todo um conjunto de ofícios e profissões especializadas essenciais à vida do pequeno burgo que se erguia e espraiava, com epicentro na Praça onde depois se veio a levantar o Pelourinho.

Aqui ficava o largo da feira e, nas suas imediações, em particular na rua Direita, dita dos Mercadores, se montavam as tendas das vendedeiras. Bem pertinho, no calhau, se vendia o peixe, e um pouco por toda aquela zona reinava a azáfama do comércio e da indústria artesanal, e várias classes de mulheres trabalhadoras adquiriam e exerciam algum do poder que noutras esferas - em particular administrativa, religiosa e militar - lhes estava vedado. 

Naquele Funchal quatrocentista, em plena linha de fractura do mundo medieval com o renascentista, inebriado entre épicas cruzadas em África e fabulosas explorações atlânticas, um evento entre todos se destacava: a anual procissão do Corpo de Deus, por alturas de Maio ou Junho. Será quase impossível imaginar hoje esse desfile quase carnavalesco, na qual toda a povoação participava, directa ou indirectamente, com trupes organizadas, cada qual com a sua dança, encabeçadas por uma espécie de porta-bandeira e acompanhadas a gaiteiros, São Jorge a cavalo, lutando com o dragão, a “gaiola”, espécie de maquineta onde ia a hóstia, que todos os anos se construía e forrava a panos. As trupes correspondiam aos ofícios, e claro, lá estavam as mulheres. A procissão arrancava com os carniceiros e hortelões, seguindo-se a estes os vários blocos femininos, retornando depois aos homens. O primeiro destes será, talvez, de um ofício algo inesperado, que se exercia nas lonjuras de Santa Catarina, nas sumptuosas e pouco discretas instalações da mancebia. São as “mancebas de partido” - as prostitutas, então respeitadas enquanto classe profissional - encabeçadas pelo porteiro do bordel , dançando em grupo acompanhadas por um gaiteiro. Seguem-se as pélas dos ofícios, blocos de dançarinas “bem vestidas e arraiadas”, formados por duplas de mulheres, em que uma dançava em equilíbrio sobre os ombros de outra, que a transportava, ao som de adufes e pandeiros tocados por outras mulheres. Primeiro a péla das peixeiras, seguida da das padeiras, e das três das regateiras, fruteiras e vendedeiras, todas dançando com seu gaiteiro.  Estes costumes mantiveram-se até ao início do século XVIII, quando foram abolidos por, numa sociedade já muito diferente e bem mais moralista, serem vistos como indecentes. A organização das pélas, arregimentação de participantes, e respectivos ensaios eram geralmente entregues a uma mulher, habitualmente espelhando o seu carácter de líder da classe. Um desses nomes foi Catarina Afonso, desde 1482 à frente da péla das vendedeiras. Catarina Afonso vendia, entre outras coisas, loiça do reino, fabricada em Setúbal; a sua reputação e estatuto permitiam que fosse fiadora, não só das colegas de ofício, como dos colegas também. E em junho de 1486, tendo-se despregado o telhado da ponte de Nossa Senhora do Calhau para a passagem da procissão do Corpo de Deus, com a avultada “gaiola” e suas traquitanas, foi Catarina Afonso que a Câmara encarregou de o voltar a pregar, dando-lhe 150 pregos e 80 réis. Parece ter atingido o auge na década de 1490, estando encarregada da venda do sabão, como é de calcular um dos bens mais preciosos na imundice que haveria de ser o Funchal daqueles tempos.

A vocação portuária do Funchal, associada à experiência bem sucedida da produção açucareira,  trouxe consigo uma outra classe, as burguesas. Geralmente mulheres de mercadores, ou de homens do chamado “estado do meio” - médicos, jurisconsultos, funcionários régios, escrivães - aqueles que não sendo nobres, tocavam a nobreza - ou até estabelecidas por conta própria, que produziam o biscoito usado nas viagens marítimas - as biscoiteiras -, e as que produziam as conservas manufacturadas com o açúcar da ilha, e exportadas para os mercados europeus da Flandres e Europa Central, assim como para o crescente mercado colonial - as conserveiras. Finalmente, não podemos deixar de esquecer quem se encarregava de transportar todos estes bens de uns sítios para os outros, do produtor ao consumidor: as carreteiras, que à força de braços, ou com auxílio de bois, transportavam os carretos. Num mundo em que, por norma, as posições de poder lhes estavam vedadas, todas estas mulheres conseguiram marcar o seu papel na sociedade, contribuindo decisivamente para a construção do Funchal.

Atribuição fotografia #1, #2, #4, #5, #6, #7 e #8: PESP / Wikimedia CC-BY-SA 4.0
Atribuição fotografia #3: Las Penlas © Julio I. González Montañés 2002-2009

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