Isto das horas
Não me lembro de ter chegado a tempo ao que quer que seja e nisso sou como a minha mãe, a quem faltava a arte de controlar as horas e transformava cada compromisso fora de casa num aflitivo contra-relógio. Dez minutos davam para vestir, passar Tokalon na cara, pegar na carteira e descer a entrada numa pressa de tirar o fôlego. O que, nos meus 13, 14 anos, naqueles anos em que queremos ser como os outros, era motivo de vergonha.
Vê-la sentar-se no banco do autocarro, com os sacos dos bordados nos pés e no colo, e, com um sorriso de orelha a orelha, confessar aquele “quase que perdia o horário” parecia-me estranho. As mães das outras miúdas não eram assim, como aquela mulher pequenina, que dividia o tempo entre as flores e os bordados e não tinha grande apreço pela vida doméstica.
Lavar, passar, limpar o pó, cozinhar e arrumar a casa eram, aos olhos da minha mãe, tarefas menores e sem qualquer interesse. Um sem fim de trabalho aborrecido, do qual não tirava rendimento e que fazia a custo. Se tivesse estudado, se tivesse dinheiro e um trabalho não tenho dúvidas de que seria mais feliz, mas, como a vida era aquela, a minha mãe protelava tudo e empenhava-se em bordar e ser agente de bordados.
O que lhe levava tempo, tinha de receber bem, fazer conversa, evitar bilhardices, gerir tensões e, pelo meio, bordava quase sem parar, fazia o almoço e cumpria os mínimos domésticos. Obviamente que, com tanto para fazer, queimava muitas vezes o arroz do almoço e faltava-lhe o tempo. E, quando se organizavam aqueles passeios no carro do meu tio Humberto, à minha mãe mentiam sobre a hora para sair.
Ela resmungava, atrasava-se, voltava duas ou três vezes para ver se tinha desligado o fogão, o ferro de engomar e ver se as portas e as janelas estavam todas bem fechadas, mas não podia perceber que tinha sido enganada. Se desse pelo logro não se calava, enquanto o carro do tio Humberto cortava pela estrada da Fundoa para irmos do Monte ao Poiso era ouvi-la lamentar-se de que podia ter feito melhor a cama e passado outra saia de vestido.
Tudo isto me enchia de vergonha. Não percebia porque razão me tinha calhado uma mãe excêntrica, que apreciava mais os noticiários na rádio do que ter a casa sem pó e toda muito arrumadinha, que exigia de nós o nosso melhor: a inteligência, o coração, o talento. Ainda me lembro de a ver, no quintal, a ouvir os sonhos do meu irmão, que muito cedo decidiu que um dia seria escritor. Nunca disse que era esquisito, matutava mais nas partes práticas do sonho.
Comigo era diferente, pedia sempre o melhor, a nota mais alta e não abrandava a exigência. Eu aguentava, repetia muitas vezes, como se me estivesse a treinar e na realidade estava. Tanto que hoje sou eu a atrasada que desce pelo elevador, com o cabelo penteado e maquilhagem como manda a regra, toda feliz por ter feito tudo em menos de uma hora e depois subo a rua a pensar que, se calhar, deixei o ferro ligado.
Sou cada vez mais a minha mãe, aquela senhora de 50 anos, de quem senti vergonha na adolescência (é uma coisa que dá a todos os adolescentes), mas que, de verdade, foi um privilégio me ter calhado como mãe e que tinha razão em tudo a começar naquilo da vida doméstica ser um trabalho sem fim e aborrecido.