Crónicas

O frio da Festa

Todos os anos lá estava ela, mais ou menos perdida, numa casa virada ao contrário, a lamentar a sorte, revoltada se chovia e enervada connosco, os inúteis que a deixavam sozinha a meio do maior naufrágio do ano

O frio veio de repente e, se não fosse estarmos em 2020 e enterrados em preocupações, teríamos vivido o momento com mais entusiasmo, já a pensar na Festa, onde calha bem a neve, roupas quentes e um cacau a acompanhar uma sandes de carne de vinha e alhos. E, naqueles encontros casuais, onde não se consegue dizer mais do que “está frio”, podíamos responder um “já está no tempo, é o que lembra ao Natal”.

E de facto traz memórias dos primeiros dias de Dezembro em que, ainda com trabalho para entregar na casa de bordados, a minha mãe começava a tirar os móveis do lugar e obrigava a limpar gavetas e a forrá-las depois com os pedaços de papel de oferta que tinham ficado do ano anterior. Estes bocados ainda traziam os laços e a fita-cola e era preciso endireitar para acertar melhor no fundo, às vezes ficavam soltos, mas não se podia discutir o caso.

Os restos de papel eram esticados, dobrados e enfiados nas prateleiras, nas gavetas e no fundo dos armários, onde se voltava a meter os travesseiros e as fronhas, os cobertores, as colchas. As camisas de dormir e os robes, os que estavam reservados para uma doença e ocupavam uma gaveta inteira da cómoda, iam a lavar. A loiça guardada enchia a pia da cozinha, mas antes limpavam-se os azulejos, desmanchavam-se as camas para encerar melhor o chão e chegar a todos os cantos. A minha mãe queria fazer tudo, limpar por dentro e por fora e isso era tabu, era assim todos os anos.

Todos os anos lá estava ela, mais ou menos perdida, numa casa virada ao contrário, a lamentar a sorte, revoltada se chovia e enervada connosco, os inúteis que a deixavam sozinha a meio do maior naufrágio do ano. O meu pai que não tinha pintado as bancas da cozinha, nem o papel para o presépio, o meu irmão que, imbuído de um amor a todos os seres vivos, a impedia de matar aranhas e eu que, já com os dedos inchados pela água fria e pela lixívia, demorava uma tarde a limpar uma janela. Lembro-me de olhar para aquela imensa desordem e pensar que um milagre talvez fizesse jeito.

Atrás das cortinas, os vizinhos acendiam as luzes das árvores e o meu irmão e todos os outros rapazes rebentavam bombas de garrafa no caminho, dentro das manilhas e no quintal. A Festa ganhava forma com as luzes na cidade e as minhas tias falavam do facho do caminho, que era um acontecimento, mas que nem sempre passava na curva. E, enquanto os autocarros se enchiam de gente que ia ou vinha das compras, a minha casa continuava imersa na mais profunda desarrumação. A minha mãe enervada, vociferava contra o mundo e contra a Casa da Luz que, por causa da sobrecarga na rede, não conseguia evitar os cortes de electricidade.

A história repetia-se a cada Natal e, todos os anos, como que, por milagre, havia um presépio em cima da mesa de engomar, uma árvore no canto da sala e bolos a cozer na cozinha na manhã do dia 25 de Dezembro. As coisas voltavam ao lugar e, com a ordem, vinha a melhor versão da minha mãe, a que ia do Natal ao Ano Novo.

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