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2 rodas = muitos dilemas!

Na minha já longa carreira em Ortopedia e Traumatologia, algumas coisas ainda me surpreendem e, em si, acabam por constituir desafios. Quando fazemos traumatologia há uma certeza, o trabalho não é programável, quase tudo é aleatório. O dia e a horas dos sinistros, as circunstâncias e a sua gravidade. As vítimas, as famílias e as decisões a tomar a cada momento. Os recursos disponíveis, as consequências e sequelas. A forma como as assimilamos e, também, como crescemos com cada uma delas.

Um desses desafios, técnico e também emocional, é lidar com as vítimas dos acidentes de viaturas de duas rodas. Perguntarão alguns, porquê este e não outros tipos de azar? Sinistros laborais, desportivos, pessoais ou escolares…. Faço desde já a minha confissão, não sou motociclista apesar de muito respeitar quem o é. Uma vez, em conversa com vários ortopedistas de várias proveniências, discutimos isso mesmo. A conclusão entre colegas de diferentes países parece ser unânime: poucos sinistros apresentam a gravidade, a complexidade e as sequelas que estes apresentam. Porquê?

O primeiro dilema, a Realidade. Na Europa, em 10 anos, estes acidentes aumentaram quase 50%. A probabilidade de conduzir, e morrer, num veículo de duas rodas, é até cinco vezes superior ao de um quatro rodas. E esta proporção está a aumentar pois os carros estão cada vezes mais seguros. Mais airbags nos carros, mais zonas de deformação e amortecimento no impacto, mais proteção do habitáculo, sistemas inteligentes de alerta, etc. As motos também evoluem, mas não tanto. Em resumo, as motos são menos estáveis e menos visíveis, os motociclistas mais expostos e vulneráveis. E a maior disponibilidade financeira predispõe à compra de motos de maior cilindrada, em relação direta com a maior gravidade dos acidentes.

As Condicionantes. As causas que levam ao sinistro são várias: a má manutenção das motos talvez, a frequente falta de respeito e atenção dos automobilistas aos motociclistas. A má conceção das estradas, algumas já adaptações de caminhos antigos, o declive, a chuva, o areão, as tampas, a irregularidade ou desnível dos pisos, certamente também, como se vê muito aqui na Madeira. Mas creio, é a condução imprudente, o risco (seja assumido ou ignorado), a causa mais frequente. Daí que, sem a consciencialização dos motociclistas, e ciclistas, não será possível reduzir as fatalidades e a morbilidade. E a idade? As estatísticas indicam que as lesões mais graves ocorrem com os motociclistas menos jovens, o que não é bem a perceção comum!

As Consequências. A grande maioria dos acidentes entre automóveis são felizmente só “chapa”, ou talvez agora melhor dito, só plástico. Com as duas rodas, nem por isso. Se o capacete ajuda a proteger dos traumatismos crânio-encefálicos, pouco mais nas duas rodas ajuda quanto ao resto: a abrasão da pele no alcatrão, as lesões viscerais pela rápida desaceleração do corpo, as fraturas pelo impacto assimétrico dos membros e da coluna nas estruturas, tal como as lesões vasculares nos esmagamentos. Complicado! De todas, duas são particularmente preocupantes: as amputações traumáticas no embate dos membros em postes e cercas e as fraturas com exposição do osso, de prognóstico mais reservado. Os serviços de emergência e saúde estão hoje melhor preparados para lidar com estes desafios. Melhor socorro, novas soluções cirúrgicas, reabilitação e apoio psicológico mas, com frequência, estes acidentes são uma angústia, ou provação, para os envolvidos, com vidas adiadas, alteradas ou mesmo perdidas.

A Prevenção. Correndo o risco de não ser inteiramente “justo” com as diferentes entidades responsáveis, a minha opinião como interveniente de fim de linha nestes sinistros (como médico), é que mais poderia ser feito. Na formação e na consciencialização. Na conceção e manutenção das estradas e arruamentos. Na sinalização e fiscalização. Mesmo no socorro e reabilitação. A nossa sociedade não é perfeita, é evolutiva. Assim, não posso deixar de fazer o alerta e de partilhar o sentido pessoal de preocupação, e a experiência, de quem vive este problema nos bastidores.

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