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SMS 3060

Quantas vezes ouvimos, sobre as vítimas, coisas como: de certeza que mente, exagera, pôs-se a jeito

A propósito do Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, que se assinalou no passado dia 25 de novembro, proponho-vos a seguinte pergunta: o que mudou desde que assinalamos a data no ano passado?

Sabemos, através do Relatório Anual de Segurança Interna que foi divulgado em junho, que em 2019 registou-se uma subida da violência nas relações de intimidade de cerca de 10%; que uma grande parte dessa violência é exercida sobre mulheres (76%). O relatório também demonstra que, em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, as meninas e mulheres são as principais vítimas: no caso do abuso sexual de menores, 77,7% das vítimas são meninas, no caso do crime de violação 91,9% das vítimas são mulheres.

Em 2020, sabemos que não mudou o facto de que a violência perpetrada contra mulheres continua a ser a violação dos Direitos Humanos mais comum. Em Portugal, e segundo os dados divulgados pelo Observatório de Mulheres Assassinadas, da UMAR, foram assassinadas 30 mulheres. Na verdade, 31, porque no dia 26 tivemos conhecimento de mais uma mulher assassinada pelo marido. Certo é que a maioria destes casos extremos aconteceram em contexto de violência nas relações de intimidade, com maior incidência em relações amorosas (presentes ou passadas). De salientar que em 63% destes femicídios já havia prévio registo de situações de violência; em cerca de 80% dos casos, a violência era do conhecimento de outras pessoas. Lembremo-nos que este é um crime público, ou seja, é um crime que pode ser denunciado por qualquer pessoa. Lembremo-nos também que é obrigação de quem trabalha na função pública denunciar situações de que tenha conhecimento no exercício das suas funções.

Sabemos também que, em 2020, continuamos a ter acórdãos de tribunal inenarráveis; abusadores de meninas de 12 anos que são condenados a pena suspensa, agressores que são absolvidos e tratados por sr. doutor, deferência que não é extensiva à vítima. Portanto, sabemos que isto (ainda) não mudou. E se é verdade que Portugal é um dos países que, em termos de legislação, tem estado na linha da frente (e ainda assim há muito por fazer), a verdade é que, no combate diário à violência contra as mulheres pelo facto de serem mulheres, continuamos a ser um País – e uma Região – em que os estereótipos e preconceitos de género continuam a ditar a forma como nos relacionamos: por isso as vítimas continuam a ser tratadas com desconfiança e agressores tratados com benevolência.

Quantas vezes ouvimos, sobre as vítimas, coisas como: de certeza que mente, exagera, pôs-se a jeito, não tomou as precauções devidas, ficou calada, não ficou calada, consentiu, reagiu, não saiu, saiu, ficou, não ficou, só agora é que falou; E sobre agressores, que nunca teve problemas com ninguém, na verdade perdeu a cabeça, gosta demasiado, tem um emprego estável, está socialmente bem integrado, nunca faltou aos deveres, é boa pessoa…

Também a comunicação social, nomeadamente nos casos de homicídio, continua a apresentar uma versão romantizada destas agressões, que resultam da ação de quem «ama demasiado», paralelamente a um escrutínio da vida da vítima, numa tentativa de esgravatar responsabilidades no comportamento de quem já não pode testemunhar. Os duplos critérios na avaliação, de quem agride ou de quem é vítima, espelham bem o quão enraizados estão estes esquemas de género. Dificilmente em outros tipos de crimes há esta inversão de papéis, em que a vítima é culpada até prova em contrário. Deixem-me particularizar um bocadinho, invocando a Beatriz Lebre, uma jovem assassinada por um colega de mestrado que achou ter direito sobre o querer da Beatriz, em Maio deste ano. A Beatriz tinha 22 anos, estudava psicologia e, paralelamente, estudava no Conservatório de Música de Lisboa, com o objetivo de vir a ser pianista. Uma das preocupações da comunicação social, na altura, foi a de determinar se havia um relacionamento amoroso entre ambos, como se a Beatriz tivesse de provar que não havia alimentado a obsessão do colega. E, no entanto, durante algum tempo, a versão a que se deu ouvidos foi a do homicida, que alegava ter um namoro tão secreto que só ele e os pais (dele) tinham conhecimento do mesmo. Relembro as palavras da Mãe da Beatriz, que nunca cedeu ao ódio mas exige um tratamento justo para a sua filha: «A ligação (…) era tão próxima quanto era a dele com as outras colegas do trabalho de grupo. Por favor, nunca digam que era namorado da minha filha. Isso era o que ele queria e foi essa negação que o fez matar. Referi-lo como namorado é dar-lhe uma vitória que ele não merece.»

A Beatriz Lebre, cada uma destas 31 mulheres, têm pessoas que as amam e a quem resta um vazio imenso. E de cada vez que se fere a memória destas mulheres, as pessoas que lhes são mais próximas também são feridas.

Também na Região o nosso maior problema continua a ser a violência nas relações de intimidade. Sabemos que continuamos com políticas demasiado tímidas no que diz respeito à educação para a igualdade. Falhamos onde devemos investir mais: nas causas, no combate aos mecanismos de desigualdade fundamentados no sexo e que estão na base da violência contra as mulheres. Mas não só.

O Secretário-Geral das Nações Unidas tem apelado para que as autoridades em todo o mundo assumam o combate à violência contra mulheres e meninas como uma parte integrante das medidas de combate à pandemia. Os confinamentos, a redução ao espaço privado significa, em muitos casos, ter de confinar com o inimigo. Infelizmente, as autoridades regionais não seguiram esta recomendação. Não se conhece quaisquer medidas específicas neste âmbito. E nem sequer se quis divulgar a linha SMS de emergência, implementada a nível nacional (e que as vítimas da Região também podem usar), com a desculpa de que quem agride também a ficaria a conhecer. Estranho, não é? Que não se divulgue um instrumento de apoio SOS com esta justificação.

Mas aqui fica: se estiver em perigo e não conseguir sequer fazer um telefonema, peça socorro para: SMS 3060.

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