Crónicas

Iremos aprender alguma coisa?

O que foi a experiência da “primeira vaga”? O medo tornou-se real, face à desestruturação do mundo e ao desabar dos rituais da vida que tínhamos por certa. Verificou-se a insuficiência das engenharias sociais que mantinham “as coisas” a funcionar, a precariedade da existência tornou-se dramática pelo confronto com a morte quotidiana, com a possibilidade do caos a tornar-se cada vez mais plausível num futuro próximo (e não apenas como cenário de “fim do mundo”). Misto de esperança e rebeldia, o “vai ficar tudo bem” assomou às janelas e, perante pilhas de cadáveres amontoados no telejornal, arrojadas digressões elaboravam já as bases da “nova normalidade”. Os mais céticos ainda puseram em questão os velhos fluxos da economia viral, feita combustível do novo coronavírus. Mas, pouca gente queria espremer a cabeça a pensar em modelos alternativos para uma nova vida nova. Chegou, entretanto, a primavera, e um novo sol parecia alumiar a terra inteira. Passado o terror do primeiro impacto e supondo-se aplacada a pandemia, logo voltaram as rotinas do antigamente, o verão ajudando à festa da vida, os políticos a cavalgarem a retoma a partir de reflexos bem entranhados no sistema, sem questionarem minimamente as suas projeções de sorridentes amanhãs e sem limparem do mundo velho os escombros. E antes que a gripe outonal fizesse a sua aparição, entrávamos já — mais tristes e mais pobres — nos confinamentos austeros da “segunda vaga”, o contágio em progressão acelerada, a “nova normalidade” cada vez menos sonho e mais pesadelo, a estatística dos mortos a abrir os noticiários, a mendicidade a ganhar foros de cidadania, a raiva a desconfinar, a economia a agonizar, a cidade fantasma ao anoitecer, a vida a redesenhar-se em esgares de sobrevivência. Poucos rostos, muitas máscaras. Entre a velha e a nova normalidade que prolonga a antiga, o que aprendemos? Vimos mais de perto o medo e a intolerância, descobrimo-nos impreparados para a emergência, porventura recuperámos valores primários do viver humano e sabemos algo mais acerca da saúde e da doença e da ciência do vírus e do cuidar dos enfermos. Mas, aprender mesmo alguma coisa quanto à reconfiguração da vida na sua “ecologia integral”, isso passaria por um mergulho em profundidade, da mente e da consciência, quanto à terra que habitamos e ao modo como estamos a ser o ser que somos: da experiência de uma temível “perda do mundo”, só pode nascer um verdadeiro “novo normal” se isso não for apenas a reciclagem da velha normalidade — face ao outro, à sociedade e à natureza. O psicanalista brasileiro Christian Ducker dá-nos pistas para a aprendizagem possível. Sinalizando o coronavírus como “metáfora”, considera que não podia ter melhor nome, pois “tira-nos do trono de nós próprios e coloca a coroa das nossas vidas na sua justa dimensão. É a coroa de espinhos que convoca uma experiência escassa na nossa época: a humildade. Diante desta pequena e destrutiva força da natureza, o nosso narcisismo dobra-se como um vassalo encurralado. Apesar de dolorosa como um espinho na alma, esta pode ser uma experiência profundamente transformadora. Descobrir que podemos muito menos do que pensamos, aceitar o imponderável que nos governa e acolher com humildade o que ainda não dominamos, pode ser muito benéfico. Pode ser uma verdadeira terapia para aqueles que precisam descansar a cabeça do peso da sua coroa de espinhos narcísicos”.

Será que ainda vamos a tempo de aprender alguma coisa?

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