O enigma da Máscara da Morte Vermelha
A palavra “máscara” deve ser, neste ano calendário, uma das mais utilizadas e pesquisadas em todo o mundo. É uma das palavras possivelmente mais polarizantes neste momento: é apenas uma máscara, não uma afirmação política; ser obrigado a usá-la é um ataque à liberdade individual; é uma focinheira; diz mais sobre quem não a usa do que sobre aquele que a usa; é veículo da “plandemia” (teoria conspiratória); é um ataque a direitos constitucionais, é uma defesa da segurança e saúde pública; é ciência em função da política; é ferramenta de uma cabala global... Solicitações de colocação da máscara em público já resultaram em vários homicídios dos proponentes. Manter a máscara colocada pode resultar em bullying e ostracismo, em certas situações e meios sociais. De repente, os “de outro lado” (seja qual for) são responsáveis por muitas coisas, inclusive pelos problemas económicos, crises dos sistemas públicos de saúde e até pelas falhas nos resultados das eleições. A questão da fronteira da liberdade pessoal, da sua forma de expressão e da rivalidade entre a autoridade pública e os direitos individuais dividem neste momento as sociedades pelo mundo fora, se bem que para o coronavírus não existem fronteiras e ele não se verga perante quaisquer direitos – nem do estado, nem do indivíduo – uma vez que, desde a sua aparência, tem apenas um, e um só, objetivo: o de se propagar, multiplicar e sobreviver. Tal como cada organismo vivo.
Não é necessário procurar nas profecias de Nostradamus, nem consultar videntes ou astrólogos, para deduzir que os grandes infortúnios passaram e continuarão a passar, com alguma regularidade, pelo nosso planeta, resultando em mortes de milhões de pessoas: a peste negra, de quase 200 em sete anos, a varíola na América de Norte, talvez de 20, a gripe espanhola, de quase 50, em apenas dois anos, a SIDA, de mais de 25, desde 1984. Quanto mais a ciência progride, tanto mais de nós há na terra e, inerentemente, mais oportunidade de transmissão de doenças temos. A facilidade de comunicação e deslocação que caracteriza os últimos cem anos possibilita tanto uma infeção mais rápida como uma mais rápida reação. Torna também as notícias cada vez mais acessíveis e, por serem lidas/vistas por mais pessoas, mais assustadoras. E provavelmente está bem assim, pois, sem o alerta e a reação imediata global, o vírus de Ébola não parava com “apenas” 11 mil mortos e a gripe suína com 284 mil.
Não é de estranhar que estas catástrofes tenham sido abordadas em várias obras de arte e sobretudo na literatura. “Decameron” de Boccaccio, o “Diário do ano da peste” de Daniel Defoe, autor das “Viagens de Gulliver”, “O último homem” de Mary Shelley, autora de “Frankenstein”, “A peste” de Albert Camus, “O ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, entre muitos outros livros – todos eles retratam eventos verdadeiros ou imaginados, retratando o comportamento humano perante as ameaças e “verdades absolutas” da existência humana.
Talvez uma das mais enigmáticas abordagens deste tema vem da pena do escritor americano Edgar Allan Poe, mestre do mistério e macabro, cujas mais conhecidas obras são frequentemente classificadas como romantismo sombrio ou terror gótico. A sua história “A máscara da morte vermelha”, de 1842, elude a uma interpretação inequívoca. Como conta a história, o príncipe Próspero pretende fugir a uma doença misteriosa mortífera que assola o mundo, chamada de “morte vermelha” por causar exsanguinação pelos poros, isolando-se no seu castelo com um milhar de nobres privilegiados e ignorando o sofrimento do povo. Num baile de máscaras que ele organiza para entreter os seus convidados, aparece uma figura misteriosa disfarçada de alguém com sintomas da doença, toda em vermelho sangrento. Ao desafiá-la a revelar a sua identidade, o príncipe subitamente morre, tal como todos os convidados, quando, ao tirarem à figura a máscara e o manto, descobrem que por baixo – não há nada! Afinal, a escuridão, a decadência e a morte vermelha dominam sobre tudo… Terá sido isso uma mera fantasia gótica? Uma visão? A afirmação da natureza inevitável da morte? Terá sido uma alegoria, se bem se sabe que o autor desgostava de lições e mensagens didáticas? Poe deixa-nos sem uma explicação ou moral da história.
A crença de invencibilidade e superioridade falsa, a praga, o medo, o desafio inoportuno, o destino, a morte – esses conceitos preocupam-nos desde tempos imemoriais e hoje em dia as suas implicações são (novamente) particularmente pertinentes. Uma coisa parece certa: a máscara é para ficar.