Crónicas

É complicado

Três amigos recolhem, voluntariamente, ao apartamento de um outro para jantar.

- Ah homi! Vieram todos juntos? Não me digam que se enfiaram todos no elevador?

- Vê Gomes, relaxa! Viemos de máscara.

- O que é que bebem?

- Tens gin?

- Tenho!

- Depende! O que é que a gente vai comer?

- A Rubina deixou um rolo de carne a fazer.

O terceiro convidado avança, malcriadíssimo, para o forno, e descarrega na travessa um olho cínico.

- Iste foi a Rboina que fez? Não tá com muito bom aspetjo… Ela meteu queije?

- Não. Tenho problemas de colesterol. Nem queijo, nem bacon, nem muito sal. Mas a carne é tenrinha, deixamos tostar, metemos um alecrinzinho…

- Ah Gomes, isto não vai lhá com alecrim. Nã queres encomendar umas pihtzas?

- Por acaso também comia uma pizza. Achas que a Rubina se ofende?

Reprimindo um choque apoplético, Gomes assegura que não, que a Rubina nessas coisas “é porreira”. Na varanda, com vista para a zona da Ajuda, os outros cruzavam o xadrez do Covid.

- Quantos pequenos na creche do Tomás?

- Esquece, só sei dum e já fiquei doente. O Filipinho.

- Filho do Fernando?

- Não! Neto do senhor Alberto, o tlim-tlim. Filho de uma filha.

- Esse nã é o melhor amigo de tê filhe?

- É! A gente chama-lhe o Filipinho tlim-tlim.

- Porque é que chamam tlim-tlim ao senhor Alberto? Ele não tinha uma funerária?

- Tinha e tem. Mas também tocou no rancho folcórico da Camacha. Triângulo.

- E pronto, um sacana de um pequeno apanha, já olho para o meu de esguelha. Com a quantidade de ranho que o Filipinho tlim-tlim lhe esfregava em cima, sou menino para apanhar Covid sem passar pela casa de partida.

Os outros afastam-se sorrateiramente.

- Em que infantário foi isso?

- No Pinguim Amarelo.

- Quem é o alucinado que inventa os nomes das creches nesta terra?

- Fecharam?

- Não, mas a Susana Alves, que também tem lá o pequeno, anda a fazer pressão para fechar.

- A que trabalha no Equipamento Social?

- Sim, já virou aquilo do avesso. E fala com o Director Regional, com a Directora da escola, escreve cartas, mete no Facebook.

- Tudo menos tirar o pequeno de lá de dentro!

- Não! É que se ela tira o pequeno, já não pode meter baixa. E quer é ir para casa com ele a receber.

- Mas não é ela que passa a vida a dizer que Covid é tudo treta?

- Filha da puhtssa.

- Está a dar o Marcelo.

Acotovelam-se à volta da televisão.

- O que é isto de convergir no possível, mesmo discordando?

- O costume. Se eu disser que te vou enfiar um dedo no rabo, tu podes discordar, mas vais ter de convergir.

- E esta de não desistir de Portugal? A gente só tá inteiros porque já desistimos. Se a gente não tivesse desistido, tínhamos mandado jogo abaixo.

- Já tínhamos entregado isto a Espanha! Vê se as passagens não eram mais baratas.

- Chegaram as pihtzas!

Com um espasmo de agonia, Gomes lembra-se do rolo de carne. Para manter o alibi, tem de o tirar do forno, e serrar a carne tenrinha da Rubina.

- Vê! Vai lavar as mãos! Não quero o Covid do Filipinho tlim-tlim na minha pizza.

- Acham que vai haver Natal?

Para o Soares, não ia haver.

Apesar de bem-humorado em privado, Soares era produto de uma educação austera, confirmada pelo mundo de uns quantos estágios profissionais de prestígio internacional. Essa experiência condenara-o à virtude da humildade, que hoje ameaçava de morte o seu sucesso. Soares geria o seu hotel e restaurantes com brio, prudência, respeito pelos empregados e fiadores, optando por uma existência discreta e frugal que ao madeirense dava ares de aselhice. Como os árabes, Soares cercava os jardins da sua competência com um muro negro de pedra e de lama, de modo que se julga ver uma cabana onde realmente existe um palácio. Mas o muro estava descido, e o palácio estava falido.

- Vou ter de despedir pessoas. Tenho vergonha de andar aí como se fosse outro ano qualquer.

- Não achas que espevita agora no Natal?

- Espevita mas é licores. Ninguém viaja enquanto não houver vacina. Os jornais já publicam notícias de cidades sem luzes e sem fogo, a usar o dinheiro para apoio social. Porra, cresci e trabalhei a acreditar que eram as luzes e o fogo que ajudavam os desfavorecidos. Que era investimento.

- Não achas que o Estado de Emergência ajuda?

- Homi, isto é como sabão molhado. Se apertas com força, desaparece-te o sabão. Se pegas com jeitinho, ele fica na tua mão.

- É fdoido. As mulheres tamém sã assim, sã come o sábão.

A nuca de Gomes arrepela-se com a hipótese, intimamente confirmadíssima, de Rubina ser como o sabão.

- Nós sabemos improvisar com jeitinho, mas planeamos à bruta. Somos pouco educados, supersticiosos, e vivemos na corda bamba. Com redes sociais ainda pior. Não há pessoa que eu despeça que não reclame: é uma treta, é uma gripezinha, um capricho de ricos e das farmacêuticas. Uma invenção dos chineses e dos americanos.

- Pois é. O sabão está a escorregar. Há dias, um colega de saída rosnou-me. Ia ficar tudo bem mas era comigo, com os funcionários públicos e com os políticos.

- É fdoido. Só há princípios quando há dinheiro. Tamém se ficasse desempregado tava-me cagande para haver fila no Hospital.

- Foi o que o Presidente da República disse.

- Disse, mas não sente. É um hipocondríaco fechado numa mansão, que anunciou a Liga dos Campeões com mais pompa do que mandou fechar Dezembro. Não pode unir com a boca aquilo que divide com as mãos.

- É fdoido.

Prosseguiram, mergulhados no lago de gin que desaguou na barragem de mozarella. Um país fatalista não podia ser confiante. E os Portugueses apreciam a desconfiança como se regalam na letra dos fados: alegra-lhes a expectativa da tristeza, porque lhes alegra a impossibilidade de serem enganados. E ser enganado é para parvos, como o Soares. A confiança, em Portugal, é um entusiasmo inepto, um privilégio de quem tem o luxo de não perceber como “isto” funciona. Isto funciona por grupos, cliques, amigos, partidos, a que só pertencendo podemos confiar. Mais vale, pois, desconfiar. E na pandemia é igual. Só confiavam uns nos outros.

- É fdoido.

- Homem, estás sempre a dizer palavrões. Já não tens idade para essa merda.

- Antes dizia que era “cumblicado”. Gozavem sempre com a pronúncia. Agora digo que é fdoido. Ninguém goza!

- Malta, tá na hora. Levem mas é o rolo de carne convosco, e o Soares leva as caixas de pizza pelas escadas. Se virem a Rubina a descer agradeçam, e elogiem a carne, o arrozinho e o alecrim.

- Beijinhos, mê crido. Podes confiar em nós. Aqui o sabão nunca escorrega.

Nessa noite, minutos depois, um homem disparava a matar num restaurante no Funchal.

Fechar Menu