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Filosofia, Democracia e Verdade

1. A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, assinala o dia 19 de novembro de 2020, como o Dia Mundial da Filosofia.

Saber com mais de dois milénios e meio de história no ocidente (Mileto, século VIº a.C.), embora tenham existido anteriormente expressões no Oriente e em África, este modo particular de conhecer, pensar e de ser, antecâmara do espanto e da inquietação (esse reino dos porquês, bem difícil de definir), foi no passado – e continua(rá) a ser no presente e futuro – essencial para interpretar, compreender e transformar as sociedades.

Num mundo onde o não pensar dá claros indícios de pretender dominar, em que a apatia, indiferença, a mentira (fake news), o relativismo, materialismo, consumismo, individualismo e narcisismo são evidentes e imperantes nas novas relações sociais digitais (as redes), em que a Verdade é subjugada quase por completo à aparência (e opinião), a Filosofia, esse “doce leite da adversidade” (W. Shakespeare) que pretende mudar o olhar a alguém, que influi e conduz uma vida (e que não tem grandes respostas para os múltiplos problemas/questões que esta coloca), é agora mais imprescindível do que nunca. Ora, diante uma pandemia que já matou perto de 1,3 milhões de pessoas em todo o globo – e em mais um momento em que a irracionalidade e o medo parecem querer voltar a triunfar –, prescindir da Filosofia é renunciar ao potencial criativo (e crítico) da humanidade de conceber novas (e boas) ideias, é claudicar e abdicar de um mundo mais tolerante, dialogante, próspero e respeitador. Confesso, o cenário futuro não é muito animador.

2. Enquanto escrevo estas linhas, os principais meios de comunicação norte-americanos acabam de declarar Joe Biden como o ‘novo’ (não obstante os seus quase 78 anos) e 46º Presidente dos Estados Unidos da América, nação considerada ainda a maior democracia no mundo, apesar das suas múltiplas imperfeições e disfuncionalidades. Um célere diagnóstico confidencia que há lições pesarosas e angustiantes conclusões a tirar deste último ato eleitoral que bateu um recorde em termos de participação nas urnas, mas no qual as sondagens voltaram a falhar, em que lamentavelmente existiram centenas de conflitos nas ruas – um candidato chegou a incitar à violência, a declarar-se antecipadamente vencedor e não aceita agora sair da Casa Branca –, milhares de mentiras, falsas acusações, difamações, ardilosos tweets, projetos/grupos organizados que minaram candidaturas e para os quais foram angariados vários milhões de dólares…, tudo isto durante um longo período de campanha presidencial. Todo este aglomerado de factos (e muitos outros) demonstram que a Democracia está doente, ou seja, as democracias (representativas) estão em perigo, tanto nos EUA (a pátria das liberdades e dos direitos cívicos) como no resto do mundo, especialmente onde os novos radicalismos de direita – e populismos – estão em ascensão.

Diz-nos a história que foi há 2600 anos que os gregos inventaram algo que viria a ter uma importância temporal transcendente, a Democracia (chamaram-lhe dēmokratia), uma forma de resistência à tirania, invenção que na altura não suscitou grande entusiasmo/simpatia entre os ‘cidadãos’ (ninguém antecipou o que viria suceder, mais tarde, por todo o planeta, e o termo guarda ainda cuidadosamente muitos dos seus segredos) e que é contemporânea do despontar da Filosofia na pólis de Atenas (século Vº a.C.). Ora, isto é repetido nos bancos das escolas até aos dias de hoje, mas tal informação/conhecimento é falsa. A palavra “democracia” é bem mais antiga e parece ter surgido 7 a 10 séculos mais cedo, e noutras povoações urbanas do Peloponeso. Todavia, este pequeno sonho de que os homens se podiam organizar e que o fariam através de fóruns ou assembleias, onde debateriam e decidiriam sobre diversos assuntos e problemas da cidade e aprovariam planos de ação, foi uma invenção singular que alterou o curso da história – e que o século XX viria a consagrar (e proclamar) como o principal sistema de governo (um “Bem Universal”), um pouco por todo o lado, apesar de se ter transformado numa formalidade impessoal, uma questão de máquinas de votos e de escrutínios secretos… como apontam alguns críticos.

Hoje, tal como a Filosofia, este modo de fazer política vê-se envolto em grande discordância e é, permanente e oportunisticamente, ameaçado de múltiplas maneiras, graças à sua tremenda fragilidade (e ‘pouca’ eficácia), sendo que cresce o número daqueles que já não o consideram desejável e, portanto, abonam que é um regime em fim de linha. Citando Winston Churchill, e porque também sou um otimista nestes espinhosos tempos, aliás “não me parece muito útil ser outra coisa”, de facto, “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros, e portanto, apesar de todas as imperfeições ou disrupções, é hora de a defender e preservar, mas também refletir e contemplar todas as suas virtudes e vícios.

3. Durante quase toda a história da Filosofia, a palavra (e busca pela) “Verdade” é uma permanência constante (Verdade aqui no sentido de uma realidade que é verdadeira, que “é o que é”, diferente das aparências, ilusões, fantasias, ficções, sombras e cópias…).

Conta-se que no tempo da sua juventude Platão até tinha alimentado pretensões a uma carreira no mundo da política, mas que rapidamente se desinteressou ao ver a desonestidade e a mentira existente nesta ‘nobre’ arte, no período das Guerras do Peloponeso, para não mencionar as acusações forjadas que enviaram o seu mestre e velho amigo, Sócrates (“o mais justo dos homens daquele tempo”), ao encontro da morte. Qualquer semelhança com o mundo da política atual (não) é mera coincidência! A retórica contemporânea, essa arte de bem falar e de com eloquência persuadir o auditório/público, socorrendo-se cada vez mais da manipulação, da distorção/deturpação, é agora mais rotineira – e serve-se de meios cada vez mais aprimorados – do que nunca (num pequeno exercício contabilístico, só em 2019 foram quase três mil as mentiras ou ‘exageros’ proferidos pelo presidente norte-americano, Donald Trump, mas a pantominice também prolifera na narrativa política nacional e regional). Curiosamente, no texto da Constituição da República Portuguesa, aprovada na sessão plenária de 2 de abril de 1976, não aparece uma única vez redigida a palavra Verdade, facto que pode demonstrar não só o desinteresse por este importante valor da/na democracia, como dá credibilidade (e força) à antiga história da “verdade nua e crua”, que no ornamento retórico se deixou enganar pela mentira, a qual se maquilhou com as suas vestes.

Por último, é um facto que o entendimento sobre o conceito de Verdade (e a sua relação com o conhecimento da realidade) sofreu alterações ao longo dos séculos. Platão, na famosa “Alegoria da Caverna” (livro VIIº da República), deu o ponto de partida para essa busca incessante, mas que agora aparenta ter expirado. O nosso até agora único Prémio Nobel da Literatura, José Saramago, diz-nos que a narrativa predominante é de que “não há Verdade”, que modernamente “vivemos no tempo da mentira universal (pois) nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira todos os dias!”. Teimosamente, prossigo a acreditar que Verdade não prescreveu ainda, que a sua busca continua a ser a missão e motivação de muitos – a inspiração de uma vida –, apesar de por vezes ser inconveniente, mas sempre inegociável, inviolável, intemporal (alguns consideram-na também “sagrada”) e um necessário e indispensável pilar da verdadeira Democracia.

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