Não precisava de ter sido assim
A história repete-se, citando um colega, “se não fosse trágico , até era cómico”.A intervenção da toxicodependência, na Madeira, tem um início, um meio, um acidente e uma sobrevivência que conheço bem.
O início só aconteceu porque se juntaram interesses vários, culminando num projeto de grande investimento, técnico, formativo e financeiro. O governo, tendo percebido a importância de agir, investiu, e muito, tendo criado condições de excelência para a emergência e desenvolvimento de uma intervenção multidisciplinar que passou a responder, de forma ajustada, às necessidades da região.
Apesar das críticas, constrangimentos, e barreiras, a tutela quis ouvir e aprender, tendo permitido que o projeto crescesse de forma inovadora, tendo sido, num determinado momento, um exemplo a nível nacional.
Houve formação continuada e certificada, nas diferentes áreas de intervenção, construção e reabilitação de espaços, adaptados às necessidades e o desenvolvimento de um olhar mais próximo e atento, ao que na altura se chamava toxicodependência. Todos ganharam um pouco, mas quem mais beneficiou foram os utentes, que passaram a sentir-se gente respeitada, nas suas dificuldades e muitas vezes na doença.
Para além da unidade de tratamento e respectivo internamento, que foi evoluindo nas condições e capacidade de resposta, o centro de dia e o gabinete de baixo limiar surgiram, num projeto próprio, com instalações adequadas e, mais uma vez, um grande investimento ao nível dos recursos humanos. O grande objetivo era a possibilidade de chegar mais perto das pessoas mais desorganizadas, integrando-as. Foi um trabalho de proximidade, articulação e envolvimento da comunidade. Mudou-se a cultura do olhar.
Só que um dia o projeto foi morto, com a vontade de alguns e o silêncio de muitos. Assisti à destruição de um projeto a funcionar com objetivos, resultados e identidade, perfeitamente capaz de se ir adaptando aos novos ciclos. Qual terá sido o fundamento que motivou essa agressão social? Questão em aberto.
Houve momentos em que vi vergonha e constrangimento no olhar de alguns, e fiquei triste por perceber como tantas vezes é difícil ser coerente, mesmo quando se tem inteligência e sensibilidade.
Entretanto os destroços foram sobrevivendo, de forma dispersa e insuficiente, com custos elevados para os utentes e para a comunidade. Aos poucos o essencial perdeu-se, basta olhar a realidade. A razão não está nas novas substâncias, está sim na corresponsabilidade dos técnicos que permitiram a degradação dos serviços que deixou de responder à degradação social. Os políticos percebem a necessidade desde que haja coerência, honestidade e ambição, focada no interesse comum.
Esta semana li uma notícia no Jornal Madeira que diz: “cerca de mil pessoas dependem de droga na Madeira “. Neste artigo pede-se à tutela que crie novos espaços de intervenção, leio eu, que restaure o que destruiu e volte a olhar para as dependências com um olhar sério e responsável de respeito por quem precisa de cuidados.
Enfim, com uma década de atraso, fica a ideia que alguém esteve mal, muito mal.
Em coerência política e técnica espero, que mais uma vez, ou de novo, numa área tão sensível e ramificada, que dos destroços se comece a restaurar.
Não precisava de ter sido assim.