Crónicas

Tribalismo

1. Disco: Três Tristes Tigres é nome de projecto nacional que é mais fácil de escrever do que dizer. Datam do início da década de 90 e trazem-nos agora, em “Mínima Luz”, uma série de canções, pelas mãos de Ana Deus e Alexandre Soares, que estarão entre o que de melhor se fez este ano na música portuguesa.

2. Livro: “Os Sete Pilares da Sabedoria” de T.E. Lawrence, o celebérrimo Lawrence da Arábia, é o livro que deu origem ao filme onde Peter O’Toole desempenha um dos mais significativos papéis da história do cinema. O filme é fantástico, imaginem agora o livro para quem, como eu, pensa que as películas ficam sempre aquém do que os livros narram.

3. Foi pela ciência que chegámos aqui. Sem ciência ainda andaríamos à caça, com paus e pedras, e na recolecta do que caía das árvores e crescia nos arbustos.

Se perguntarmos à maioria das pessoas o que consideram ser a “ciência”, muito provavelmente, receberemos como resposta algo simples: “é o conhecimento que temos do mundo”. Só por si não chega. Este simplismo cria problemas na percepção que temos do que nos rodeia.

Para um cientista, as coisas são completamente diferentes: ciência é, primeiro que tudo, uma metodologia, os modos de conseguir separar o trigo do joio, a verdade da falsidade. Para determinar como o mundo funciona, a ciência apela às evidências.

Ao contrário de muitos que gostam de comprar verdade mastigada, em ciência não há autoridade, não há chefes, directores, encarregados. Em ciência o que conta é a evidência, o facto, a prova.

Muitos de nós temos a tendência de tomar a parte pelo todo, de aceitar “verdades” não comprovadas, de pensar que informação, vinda de certos sítios, são factos, só porque sim.

Estranhamente num tempo em que o saber está ao alcance de um clique, é bizarra a falta de paciência de cruzar dados, de os verificar, de pensar em função do conhecimento que se vai acumulando e, finalmente, concluir.

Somos animais sociais, integramos muitos e variados grupos, e muito do nosso tempo é gasto a negociar relações. A nossa história evolutiva demonstra todo um comportamento nesse sentido. Podemos, mesmo, dizer que a socialização é um comportamento instintivo e uma das características dos humanos.

Se, por um lado, há uma ligação entre a ansiedade e o que se pode designar de “conspiracionismo”, por outro, aqueles que aderem a estas “teorias” são uma espécie de desiludidos que, ao invés de se empenharem em o corrigir, arranjam estas “estórias” para que, comodamente, justifiquem o seu inanimismo. Resolvem a ansiedade de um modo determinista considerando que, perante estas conspirações, que têm por verdadeiras, pouco há que fazer. E, assim, cria-se um sentimento de fim de ciclo, uma espécie de fim do mundo enlouquecido.

Estes tempos estranhos induzem muitos de nós a acolher teorias estapafúrdias, sem qualquer sentido, como sendo verdades. Não há a preocupação de confirmar ou verificar a sua cientificidade. Partilham-se estórias sem sentido que se foram buscar a sítios refundidos da “idiot web”.

Elas são os Protocolos do Sião e a grande conspiração judaica mundial; os “Chemtrails” que não são condensação de água, mas produtos químicos que procuram condicionar as nossas decisões; a “Nova Ordem Mundial” e o George Soros, que nos vão tornar em seres acéfalos, com a ajuda das vacinas do Bill Gates; das elites a favor do aborto para se poderem alimentar de fetos; os requentados “Illuminati”; o “9/11” que fez cair as torres gémeas, não tendo isso nada a ver com os aviões que com elas colidiram; a Terra Plana, a mais idiota das teorias; o Obama que não passa de uma marioneta muçulmana controlada pelos estupidamente ricos; a santificação do manifesto do assassino norueguês Anders Breivik; as doenças artificiais nas quais se inclui a COVID-19; as vacinas que mais não são do que meios de propagar o autismo; o aquecimento global e as alterações climáticas que todos sentimos e que não passam de verdades distorcidas, por razões ideológicas ou financeiras; o 5G que nos vai torrar o juízo e a inteligência.

Há quem acredite em algumas destas coisas e há quem acredite em todas. Não tem muito tempo, corria na “web” um vídeo onde Marcelo Rebelo de Sousa demonstrava uma paciência de santo para aturar um conterrâneo nosso que defendia que a pandemia foi criada por cinco famílias capitalistas que dominam o mundo e que pensam que a Covid-19 matou só “cinco pessoas”. Parece que o PR está “refém dos Illuminati, dos Bilderberg e do Cherne”. A única coisa que não percebi foi a que teve a ver com o 5G ter morto 20 mil submarinos durante os testes.

Podemos, assim, considerar que estas pessoas sofrem de tribalismo: o pensamento do grupo a prevalecer, a emoção sobre a cientificidade. Torna-se quase impossível trocar ideias com quem assim pensa. Os argumentos políticos muitas das vezes degeneram em ultraje e animosidade; as pessoas sentem-se como se a sua identidade estivesse sob ataque, quando a sua maneira de ver as coisas é posta em causa. É difícil, muito difícil, concluir seja o que for em debates, quando uma das partes não usa o rigor e a evidência para defender aquilo em que acredita.

Nem os partidos políticos são clubes de futebol, nem as ideias políticas são dogmas insofismáveis. Debater, quando de um lado está a cientificidade e do outro uma espécie de culto, torna a conversa impossível.

Pessoalmente, fujo disto como o Diabo da Cruz. Por mais inteligente e digno de admiração que o meu interlocutor seja.

Sim, porque há pessoas inteligentes que se deixam envolver nestas teorias sem nexo.

4. Somos muitos, os que temos uma enorme dificuldade em entender e em lidar com este estado de coisas. É sempre importante recorrer a Karl Popper: “a sociedade aberta”, a democracia, tem de persistir face ao modelo de “sociedade fechada”, o tribalismo, que nega a realidade do indivíduo, persiste no critério do agrupar até criar multidão, onde é mais fácil impingir o irracional e a rigidez.

Para o filósofo, uma sociedade aberta apoia-se no preço a pagar por cada um de nós preocupar-se com a sua própria vida, sendo o futuro, quase sempre, um “salto no escuro”. Salto esse que, para muitos, é apaixonante, mas que, para outros, encerra uma enorme ansiedade. Tudo isto tem muito de liberdade, de risco, de possibilidade de erro, de fracasso. Uma sociedade saudável lida bem com estas coisas e não deixa que a ansiedade trave a necessidade de fazer escolhas. Em sociedades doentes acontece exactamente o contrário e, mais tarde ou mais cedo, delas emerge a irracionalidade.

Com Popper, podemos entender o processo histórico que nos retirou do tribalismo, ou da sociedade fechada, e nos trouxe até ao individualismo, ou à sociedade aberta — não previu o pensador a emergência de quem nos quer levar de volta ao tribalismo, onde tudo reside no grupo ou na “quintessência” do Estado, onde o indivíduo é insignificante.

Estarei no lugar oposto, abraçando o individualismo como processo em que o indivíduo tem precedência sobre o grupo, pertencendo a este por acto consciente de ser isso uma necessidade. Sabedor de que, cada um de nós, é um fim por si só, cada um de nós, é uma entidade autónoma.

5. “A ciência é o grande antídoto contra o veneno do entusiasmo e da superstição.” – Adam Smith

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