Análise

Uma “fadiga pandémica” precoce

Posturas insensatas são cúmplices do vírus. A luta será demorada

O vírus continua a fazer estragos em larga escala, alguns dos quais impensáveis. Se bem cedo percebemos que a pandemia é problema de saúde pública que chega a todos, debilita os mais frágeis e mata sobretudo os mais velhos e se passados uns dias notamos que a economia pouco dada à diversidade ia apanhar por tabela e por isso necessitaria de injecções regulares de verbas a fundo perdido, de medidas de apoio à criação de emprego e políticas que assegurem a sobrevivência das empresas, agora sentimos que a covid-19 tomou de assalto comportamentos, discursos e modos de vida, nem sempre pelas melhores razões e muitas vezes eivados de insensatez.

Os danos oscilam entre os ataques despudorados à verdade que decorre dos factos, dos números assustadores e dos problemas que se agravam, às leituras truncadas de textos jornalísticos e às conspirações orquestradas contra as regras que visam evitar a propagação.

Há quem tenha passado das marcas. Provavelmente o Pingo Doce foi a marca portuguesa mais falada da semana ao anunciar a abertura das lojas para as 6h30, opção controversa que não vingou e obrigou a recuo mesmo antes de António Costa ordenar que antes das 8h ninguém abria portas. A “criatividade quanto a horários” levou mesmo o primeiro-ministro a assumir algo que não é muito comum em política: “A culpa é toda minha. O mensageiro transmitiu mal a mensagem”, referiu, admitindo que houve “equívocos” e “interpretação defeituosa” sobre as medidas destinadas a travar o avanço da Covid-19 em Portugal. E porque assim foi, também recuou, eliminando as excepções à regra que manda ficar em casa.

Do episódio resta a certeza que as derivas comunicacionais dos decisores em tempo de crise - e tem havido mais do que era admissível - favorecem algumas espertezas.

Quem também pisou a linha vermelha foi Graça Freitas. A directora-geral da Saúde julga que o facto de haver muitos emissores de informação sobre a Covid-19, desde os media, aos peritos, passando pelas redes sociais, pode confundir as mensagens e baralhar o público, ajudando à “fadiga pandémica”.

Fadiga causa tudo o que é mal explicado e pouco transparente, e esta mania de desconsiderar os portugueses, como se fossem incapazes de seleccionar e absorver a informação essencial.

O cansaço físico até é admissível, mas fazer deste uma bandeira que favorece a conjugação de várias crises neste ano atípico e uma fatalidade que configura desistência não abona a favor de ninguém. O que precisamos é de esperança mau grado alguma exaustão colectiva que, em nenhum momento, pode afectar a lucidez.

Neste contexto, a Ordem dos Médicos Dentistas na Região deu um péssimo sinal à sociedade, pois resolveu alistar-se na tribo dos que, à conta do vírus, julgam ter força acrescida para exterminar o jornalismo. Bastava que não andasse alheada da realidade para saber que os dados constantes do boletim epidemiológico diário não são obra da criatividade jornalística.

Querer impor a lei da rolha para não perturbar a boa imagem de escolas, farmácias e clínicas ou o sono a quem dá o melhor de si pela saúde é leviano. A pandemia já dura há 9 meses mas, segundo os entendidos, o pior está para vir. Logo, se em vez de fomentarmos o o respeito por medidas restritivas mas elementares para travar o vírus houver incentivos à desagregação social, às manifestações violentas, à luta de classes e à briga inconsequente, o esforço louvável de muitos será inglório e o descontrolo total contribuirá para o caos, do qual nem os que estão bem de saúde conseguirão escapar.

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