Crónicas

Bolos e broas

Sou capaz de me meter a fazer broas e a experimentar a velha receita de carne vinha e alhos, com pão ensopado, nabos, cenouras e pimpinelas

A festa está aí, quase a chegar, mas penso que este ano vou ter saudades do aperto nas lojas e nos centros comerciais, das fotografias de copo na mão ali na placa central e dos excessos da noite do mercado. E nem sequer são os meus hábitos, mas os do povo que, chegado a Dezembro, dá-se ao luxo de comer, beber e conviver com uma alegria genuína, entre os jantares da empresa e dos amigos do liceu, mais os encontros casuais na rua, onde se brinda com poncha, encostado a uma barraquinha do mercado de Natal.

Esta vida que 2020 nos trouxe tirou até aquele enfado de ver os enfeites de Natal em Outubro e de pensar como o consumo desenfreado corrompeu o espírito da quadra. E era capaz de estar agora a escrever sobre as tradições engolidas pelas febre do comprar já feito e pronto a usar ou a comer. Há ano talvez fosse assim, hoje tenho saudades dessa festa consumista, de compras e trocas em que a maioria se lançava para dar o melhor presente ao filho, ao pai, à mulher, ao marido. E, em que à falta de outra ideia, oferecia meias.

Os números não enganam, os da doença que nos fez reféns em Março e os da economia. Não há condições, nem dinheiro para viver esse Natal assim, despreocupado, a varrer as contas para debaixo do tapete até Janeiro. Este ano estamos todos preocupados, com menos dinheiro, fizemos uma espécie de aterragem de emergência e, a mim, parece-me que desembarquei num Natal dos anos 70, sendo que agora me cabe o papel da minha mãe. Fosse como fosse, ela nunca deixava morrer o espírito na velha casa do Laranjal.

A casa onde agora passo as minhas tardes e que me trouxe de volta às origens. Descobri que, afinal, sei fazer bolos e tenho melhor mão para a cozinha do que julgava e, por essa parte, havemos de ter todos um bonito almoço, daqueles à moda antiga, com bolo de laranja e salada de fruta. E, ali na sala da televisão, há-de nascer um presépio de um lado e uma árvore do outro que, para ser como era dantes, terá tudo o que estiver guardado dentro dos armários. Não vai faltar a escadinha, que há espaço, tangerinas e pêros. Falta o trigo para semear, mas tudo se irá compor a tempo.

Sou capaz de me meter a fazer broas e a experimentar a velha receita de carne vinha e alhos, com pão ensopado, nabos, cenouras e pimpinelas. E teremos um ananás dos Açores e junquilhos e sapatinhos nas jarras e vamos arranjar maneira de meter uma gambiarra no beiral da casa para acender uns dias antes. Tudo naquele jeito antigo de fazer as coisas, com carinho e entusiasmo, como se a casa fosse um palácio e não houvesse melhor lugar para estar. A minha mãe fazia assim, lá, nos anos 70, quando éramos miúdos e o dinheiro não era muito.

Tantos anos depois não vejo outra maneira de viver o Natal que aí vem. Ao menos terá o cheiro a bolos e a broas, um menino Jesus no presépio e luzes a piscar na árvore.

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