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O valor da solidariedade

Inquestionavelmente, o Papa tem um inegável papel político e social no mundo, no tabuleiro geopolítico e na moral dos povos. Na sua nova Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco chama a atenção para o reacendimento dos populismos, do racismo e dos discursos do ódio. É mais um aviso, entre vários que já antes ecoaram, vindos de vários quadrantes. Irá o mundo ouvi-lo e evitar o possível retrocesso civilizacional que ameaça a democracia?

Na terceira Encíclica de Francisco fala em “sinais de regressão e no de novas formas de egoísmo”.

O Papa Francisco criticou também na sua nova Encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos) a perda de “sentido social” e o retrocesso histórico que o mundo está a viver.

“A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos económicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”, escreve Francisco no texto publicado pela agência Ecclésia.

A nova Encíclica papal é a terceira do pontificado do Papa Francisco, após Lumen Fidei (a luz da Fé), em 2013, e a Laudato Si, em 2015, sobre a ecologia integral.

Cinco anos depois a nova Encíclica identifica o surgimento de “novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascarada por uma suposta defesa dos interesses nacionais”.

A Encíclica associa os discursos de ódio a regimes políticos populistas e a “abordagens económicas liberais”, que defendem a necessidade de “evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes”.

Sobre o racismo Francisco afirma ser um “vírus que muda facilmente” “e está sempre à espreita” em “formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus tratos”.

Essas expressões devem envergonhar-nos a todos, porque põe a descoberto o pouco que a sociedade evoluiu de facto e que esses avanços não estão garantidos, considera.

Francisco, pede por isso, que os países abandonem esse “desejo de domínio sobre os outros” e adoptem uma politica “ao serviço do verdadeiro bem comum”, afirmando que as politicas se devem preocupar mais em “encontrar uma solução eficaz” para a exclusão social e económica do que com as sondagens.

O Papa defende ainda que o “desprezo pelos vulneráveis” pode esconder-se em formas populistas que, “demagogicamente, se servem deles para os seus fins”, ou em formas liberais “ao serviço dos interesses económicos dos poderosos”, e alerta para a diferença entre populismo e popular.

Francisco considera essencial pensar a participação social, política e económica, de forma a incluírem movimentos populares e lamenta a “intolerância e o desprezo perante as culturas populares indígenas”.

Referindo-se especificamente às plataformas digitais e redes sociais, mostra-se preocupado com as manifestações de ódio e de destruição aí propagadas, e com o visível aumento de “formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamações, afrontas verbais”.

Francisco, destaca também nesta Encíclica, a solidariedade que “como virtude moral e comportamento social, fruto da conversão pessoal, exige empenho por parte de uma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de caracter educativo e formativo. Pensa em primeiro lugar nas famílias, chamadas a uma missão educativa primária, e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado para a transformação da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos. Quanto aos educadores e formadores que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões morais, espiritual e social da pessoa. Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. Também os agentes culturais e dos meios de comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação, especialmente na sociedade actual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação).

Nesta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social fala-se do “valor da solidariedade” e da falta de solidariedade que se reveste numa vida pública sem qualidade, sem a preocupação dos interesses comuns da sociedade. Neste momento, deveríamos recordar as lições da teoria roussiniana do contrato social que concebe o contrato como cooperação na produção da vontade geral. Mais do que esta explicação filosófica, é a prática que conduz ao convencimento de que existe ou deve existir uma espécie de cooperação entre os membros de uma sociedade para torna-la mais justa, isto é um pacto de solidariedade.

Neste sentido, o princípio da solidariedade se pode apresentar não só como uma exigência ética, mas também como um critério de âmbito jurídico-político, quer dizer, como um princípio relacionado não como a caridade, a benevolência ou a “humanidade, mas com a justiça e a especificação da igualdade”.

A solidariedade, além dos deveres concretos, dá origem a um dever geral a que estão obrigados os poderes políticos e os cidadãos, e cujo beneficiário é sempre a comunidade. Os direitos de solidariedade serão os que se reconhecem a “sujeitos que, pelo seu estatuto pessoal (menores e incapazes), social (marginalizados, desempregados, imigrantes) ou pela sua própria definição (pensemos nos direitos dos animais), ficariam à margem do campo jurídico. A solidariedade impulsiona tanto ou mais que a igualdade, os direitos específicos, quer dizer, os direitos que não são do “homem ou do cidadão”, e que pretendem resolver carências de sectores específicos através do uso do critério da igualdade como diferenciação, afim de se alcançar a igualdade como equiparação no ponto de chegada.

Segundo Francisco, nesta Encíclica, “os últimos em geral” praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer. Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes, a transformamos num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É enfrentar os efeitos destrutivos do império do dinheiro (…). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história, e é isto que os movimentos populares fazem.

Neste capítulo, “O Valor da Solidariedade”, o Papa Francisco fala ainda da casa comum que é o Planeta e faz apelo aquele mínimo de consciência universal e da preocupação pelo cuidado mutuo que ainda possa existir entre as pessoas. “De facto, se alguém tem água de sobra, mas poupa-a pensando na Humanidade, é porque atingiu um nível moral que lhe permite transcender-se a si mesmo e ao seu grupo de pertença. Isto é maravilhosamente humano! Requer-se este mesmo comportamento para reconhecer os direitos de todo o ser humano, incluindo os nascidos fora das nossas próprias fronteiras, diz Francisco nesta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social.

Numa entrevista concedida pouco antes de morrer (1980), o filósofo francês J. P. Sartre dizia que a fraternidade sonhada pela Revolução Francesa constitui um ideal que continua ainda à espera de concretização prática na História. Para o cristão, este ideal de fraternidade começou muito antes, com a mensagem de Jesus da Nazaré. Oxalá esta Encíclica ajude a torna-la mais livre e real. Trata-se de um ideal não só cristão mas também humano, que hoje, costuma ser traduzido mais frequentemente pelo de solidariedade como o fez o Papa Francisco.

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