«Temos fantasmas tão educados/Que adormecemos no seu ombro»*
* Versos de um poema de Natália Correia
Esta semana o PS-Madeira apresentou, em sede de Assembleia Legislativa Regional, uma proposta que recomendava ao Governo Regional a ativação do «mecanismo de retirada de mercado» e a partir daí direcionar produtos regionais com dificuldade de escoamento para instituições de solidariedade social que não tivessem sido contempladas pelo Fundo de Emergência Social (FEAS) ou pelo Fundo de Apoio Regional a Organizações Locais (FAROL).
Por que razão consideramos ser esta uma boa alternativa?
Por um lado, a ativação do mecanismo de retirada de mercado garantiria uma compensação financeira aos produtores e produtoras, o que ajudaria a minorar os efeitos das medidas de contenção da pandemia. Não esqueçamos que uma boa parte da nossa hotelaria e restauração regista quedas abruptas e, como tal, também não consome os produtos que produzimos – pelo menos não nas quantidades necessárias para escoamento da totalidade do resultado do investimento dos nossos produtores e produtoras.
Por outro, a medida que propusemos permitiria que os produtos retirados fossem redirecionados para instituições de solidariedade social que neste momento não têm mãos a medir e tentam apoiar centenas de famílias que estão em situações extremamente difíceis.
Exortámos à convergência de vontades e lembrámos que estamos prestes a chegar ao Natal, que implica uma interrupção de atividades letivas, que significará um agravamento da situação de muitos agregados com crianças e adolescentes, já que as refeições nas escolas cessarão durante esse período. Sublinhámos a importância de se reforçar as respostas disponíveis. Esta era uma solução que aliava o apoio aos nossos produtores e produtoras ao apoio às centenas de famílias que estão em situações extremamente difíceis. Infelizmente, e uma vez mais, a bancada da maioria barrou a proposta. Para justificar o veto, fez uma longa enumeração de iniciativas (entre outras, a elaboração de um panfleto informativo, só para se perceber o teor da pertinência). E uma das suas deputadas fingiu mesmo não perceber de que se falava e invocou a existência do Banco Alimentar contra a Fome como organismo que recolhe recursos excedentários. É pena que uma vez mais o calculismo partidário se sobreponha à vontade de atenuar as dificuldades sentidas pelas pessoas. Ainda assim tenho esperança que a bancada da maioria surja, daqui a uns tempos, com uma proposta semelhante, mas assinada pelas suas forças partidárias. Não que subscreva plágios. Mas pelo menos teria a virtude de beneficiar quem precisa, que é o que realmente interessa.
Desde 8 de agosto de 2020, data em que Miguel Albuquerque piscou o olho a um partido sexista, xenófobo e racista, que pergunto pela posição das pessoas que têm responsabilidades políticas (no partido ou no Governo) sobre esta aproximação a um partido antidemocrático. Tive finalmente resposta esta semana, pela voz dos deputados Brício Araújo, Carlos Rodrigues e Jaime Ramos. Estes deputados não só defenderam acerrimamente o acordo que Rui Rio celebrou com o líder do Chega, como invocaram a sacrossanta autonomia para, pasme-se, validar uma posição do mais centralista que se tem visto desde o apoio ao PAEF.
Se não estivesse lá e ouvido em primeira mão, não acreditaria. Mas disseram-no e repetiram-no, em alguns casos num tom que desafia os decibéis de qualquer recreio de escola: a bancada do PSD-Madeira, através de três deputados, um dos quais líder parlamentar, aplaudiu a negociata firmada por Rui Rio e A. Ventura. Dito de outro modo: em Lisboa, decidiram como será governada a Região Autónoma dos Açores nos próximos quatro anos. Sob aplausos da bancada do PSD na Assembleia Legislativa da Madeira. E invocaram a autonomia para justificar as palmas.
Convém lembrar, não é o único partido a assinar um acordo que integra um partido que defende a abolição de avanços civilizacionais. Este foi um negócio alargado em que também participa o CDS, o PPM e a Iniciativa Liberal. O único partido que depois de se disponibilizar para viabilizar a coligação se quis manter ao largo, quando o Chega entrou a bordo, foi o PAN: «Não nos interessa os acordos, interessa-nos a normalização de um partido que não pode ser normalizado por nenhum outro líder partidário, porque estamos a abrir uma caixa de Pandora, com todas as medidas que já verificámos na Assembleia da República pelo mesmo partido». Mais claro não podia ser.
Disse em sede de Assembleia e repito: Tal como a história nos ensinou, não há esperança possível quando partidos que se dizem democratas se associam a partidos racistas, xenófobos e sexistas, partidos que estão contra os mais básicos direitos humanos e achincalham princípios plasmados na nossa Constituição. Partidos que instrumentalizam a democracia para asfixiá-la. E por isso é tão sintomático que por cá se diga estar a defender a autonomia quando na verdade se vende a democracia.
Reitero a minha perplexidade face aos aplausos que ouvimos esta semana na Assembleia Legislativa da Madeira – aplausos a um «entendimento» feito em Lisboa, que normaliza um partido antidemocrático e autoritário. Muito a propósito, a minha leitura de cabeceira é um livro chamado «O Crepúsculo da democracia», de Anne Applebaum, autora premiada com o Pulitzer. É tese deste pequeno livro que as democracias, tal como as conhecemos, estão sob ataque com o fito de serem substituídas por regimes de cariz autoritário. E a autora lembra-nos que os autoritários sempre precisaram – e continuam a precisar – de aliados que os apoiem e preparem o assalto ao poder, pessoas que «que conseguem utilizar linguagem legal sofisticada, pessoas que conseguem defender o violar da constituição ou o distorcer da lei. Precisam de pessoas que poderão dar voz aos rancores, manipular o descontentamento, canalizar a fúria e o medo.» E lembra que «O colapso de uma ideia (…) a que, por vezes, se dá o nome de “ordem liberal ocidental”, precisará de pensadores, intelectuais, jornalistas, bloguistas, escritores e artistas (…)» - que se prestarão à tarefa de minar os valores democráticos.