Crónicas

O abandono do pequeno comércio e restauração

Dizia-me esta semana um amigo que trabalha na restauração que este ano tem sido de um profundo sofrimento. Que é difícil ver a luz ao fundo do túnel mas que se tem tentado aguentar, reinventando-se, mudando práticas e arranjando novas formas de servir o cliente para que o negócio para o qual trabalhou parte da vida não se desmorone num ápice. Que tem feito das tripas coração para não despedir os funcionários e fechar a porta. Resistido à tentação de desistir, porque afinal de contas tem pessoas que dependem dele e às quais não quer, nem pode falhar. Uma família que precisa do seu rendimento. Trabalhadores que sempre estiveram ao seu lado. Mas, que depois de tanto esforço para arranjar forças e não deitar a toalha ao chão, sentiu uma profunda revolta e um violento murro no estômago, com as regras definidas para o pequeno comércio, nas áreas consideradas de risco, para os dois próximos fins de semana. Eu compreendo-o. Nem imagino a frustração e o desespero que deva sentir neste momento.

As pessoas estão com medo. Tentaram ver uma luz ao fundo do túnel mas alguém acaba sempre por apagá-la. Um constante voltar à casa de partida quando já se palmilhou tanto às escuras. E, na verdade, é muito difícil de explicar a quem supostamente tinha um negócio rentável, mesmo que não desse para grandes extravagâncias ia dando para as despesas, para ajudar a mãe ou pai, dar um pouco mais de qualidade à filha ou filho e viver de uma forma razoável com o que sobrava. O que podemos nós dizer a essas pessoas para quem tudo mudou de repente? O que podemos nós fazer? Podemos no mínimo ser coerentes nas decisões, justos e equilibrados. Mostrar que se é para sofrer é para sofrermos juntos. Se é para um é para todos. Penso que dessa forma custaria menos. Ver que estamos todos na mesma situação. No mesmo barco. Isso podia não atenuar o sufoco financeiro mas pelo menos seria inatacável do ponto de vista ético e moral. O que permitiria passar estes tempos com um pouco menos de revolta e mais sentido cívico.

O problema é que não é isso que as pessoas veem. O que se lhes deparam são cenários de profunda injustiça. Que há portugueses de primeira e de segunda. Que uns podem e outros não. Que há quem possa furar as regras e quem possa fazer regras à medida. Isso não é suportável num momento tão dramático como este. E isso vai dar cabo das pessoas. Da sua saúde mental, da sua auto estima e do equilíbrio das relações humanas. Porque nos começamos a virar uns contra os outros, porque começamos a ser policias uns dos outros e porque isso instiga sentimentos negativos perante quem se calhar nem tem culpa da situação. Estes dois fins de semana são apenas e só mais dois exemplos de uma saga que começou com as excepções para as celebrações do primeiro de Maio. Não posso ter o meu restaurante de bairro aberto mas posso ir comer ao Pingo Doce. Não posso vender frangos em take away a partir das 13 horas mas posso ir buscar um frango assado ao Continente até às 23h, não posso abrir a minha loja de roupa à tarde mas posso ir comprar umas meias ao Auchan.

Nada me move contra as grandes superfícies e talvez nada mova ao meu amigo também. Mas gera-se um sentimento de revolta contras as próprias pelas regras injustas que nos aplicam. Se calhar nas grandes superfícies gera-se um fluxo maior de pessoas do que nas lojas de bairro, nos restaurantes a quem já foram impostas todas as medidas e mais algumas e no pequeno comércio. Não podemos abandonar os mais pequenos numa altura tão dura como esta. Conheço empresários que mesmo apavorados com a situação fizeram alterações nos restaurantes para ir de encontro às regras pedidas pelo Governo. Outros até investiram em pleno Covid tentando arranjar novas formas para fugir à ruína. Não podemos mudar novamente as regras do jogo. Porque não é justo para milhares de portugueses. Não é justo sacrificar mais uma vez os que mais têm sofrido financeiramente com esta situação. A menos que atribuam uma compensação financeira nestes dias equivalente à faturação em período homólogo do mês anterior. Senão não estamos só a rebentar com a economia. Estamos a dar cabo das pessoas.

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