2020. O real e a tela
Com o pé a pisar o último chão deste nefasto ano, reavivamos a madrasta primavera que se transformou num frio inverno que mal aqueceu o verão, e que encerrará num ciclo vicioso de angústia e indefinição, num tempo desprovido de estações, cuja estranha meteorologia perdeu a capacidade e necessidade de previsão. O futuro é um oco tempo sem conjugação e a vida só não está suspensa, porque o grande relojoeiro perdeu o domínio da mestria metálica da máquina, que parece ter ganho vida própria no seu devir desregulado, que galopa num vazio dum amanhã que tarda em amanhecer. Se houvesse uma justiça providencial, teríamos de ganhar um ano, tal como tivemos alguma borla no consumo de água e eletricidade nos primeiros tempos da pandemia. Se o layoff se aplicasse a todo o consumo que não usámos e às consultas, tratamentos e cirurgias adiadas, provavelmente não nos envergonhávamos das estatísticas da letalidade não-COVID, enquanto dano colateral da pandemia que tardamos em deixar esquecida sob o tapete, e que não tem pergaminhos de constar num boletim público.
À conta duma pandemia oriunda da catedral planetária das bugigangas, a que subtilmente nos rendemos, ganhámos um bónus não-declarado e como tal, a um valor não taxável pelo crivo da autoridade aduaneira. Ele entrou nas nossas vidas plenas de mobilidade e nós embasbacados de sorriso rasgado, pensámos: “mas que negócio da China! Fiz um belo negócio!” O resto da história já sabemos. Só que é uma “never ending story”. Não sabemos como terminará. Quantos mais mortos reclamará ou quanta mais destruição provocará. Há-de certamente alguém cá ficar, para registar estes segundos intermináveis. E pedir responsabilidades “solteiras”. O bom seria mesmo aprender qualquer coisa.
As eleições americanas ainda colocam o mundo entretido tal como a sua fecunda indústria cinematográfica, com uma comunicação social (dita de referência) que em democracia censura informação, mas que aponta baterias às “fake-news” e redes sociais. Para quem afirma que a América perdeu influência no mundo, penso que é o resto do mundo que perde influência naquela terra. Mais ninguém de lá sabe que candidatos tivemos ou que presidente temos, por mais “selfies” que o nosso registe com uma coluna de som indomável. A saga da contagem de votos naqueles cinquenta estados dá um belo argumento da sétima-arte. Infelizmente são poucos os países daquela dimensão que nos proporcionam toda a vivacidade e suspense em torno da formação do mítico número 270 do “colégio eleitoral” daquela união americana que determina um “Mr. President”. Imagino que se a China e a Rússia se assemelhassem a democracias, o espetáculo que não nos proporcionariam entre “thrillers” de envenenamentos e desaparecimentos de pretensos candidatos. Pena que Sir Sean Connery não está já entre nós, para protagonizar essa saga real e restituir a ordem mundial na tela do cinema, livrando-nos do totalitarismo, comunismo (e já agora duma pandemia virtual).
Enquanto as eleições americanas elegem o “reles” de entre o “péssimo” numa terra onde a pandemia alastra à proporção da “população do Funchal” por dia, na Madeira ainda damos luta a um vírus que até o momento, apenas conseguiu cobardemente reclamar uma vida quase centenária. Que se fique por aí. Que é como quem diz: tenham cuidado com a pandemia (e com o que lerem).