Incoerências
Ora, na política, como na vida, mas especialmente na política, não podemos ter memória curta
O Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, encerrado o processo eleitoral, realçou o aumento da afluência às urnas como “sinal positivo para a democracia, reforçando a solidez da Autonomia e a representatividade dos órgãos de governo próprio e, em particular, da Assembleia Legislativa”, tendo, no cumprimento dos poderes que lhe confere a Constituição da República Portuguesa e o Estatuto Político Administrativo, ouvido os partidos com representação na Assembleia Legislativa e decidido indigitar o líder do segundo partido mais votado como Presidente do Governo Regional. Fê-lo essencialmente por entender que foi o único a apresentar uma solução governativa responsável com garantias de estabilidade, abrindo, assim, uma “nova fase na vida política dos Açores, com novos protagonistas”.
Não vou, naturalmente, comentar os resultados eleitorais que respeito. E também não vou aqui comentar a decisão do Representante da República, que evita qualquer crise política, mas não posso deixar de estranhar a reação do primeiro ministro que se manifestou incomodado com a solução parlamentar encontrada. Desde logo porque foi António Costa quem, em 2015, após ter perdido as eleições, acabou por chegar ao poder através de uma solução idêntica, talvez menos limpa e bem mais opaca, fazendo aprovar uma moção de rejeição ao programa de governo da coligação mais votada, moção aprovada com votos a favor de todos os deputados do PS (incluindo os dos PS Açores), do PCP, BE, PEV e PAN. António Costa transformava uma derrota eleitoral numa vitória parlamentar e referia: “o que é novo é que, desta vez, as oposições foram capazes de assegurar uma alternativa maioritária na formação do governo. Acabou o tabu, derrubou-se um muro, venceu-se mais um preconceito. (...) Não é altura de salgar as feridas, mas sim de sará-las. (...) Não é de crispação que Portugal carece, mas sim de serenidade.”
Ora, na política, como na vida, mas especialmente na política, não podemos ter memória curta e devemos ser absolutamente implacáveis perante este tipo de incoerências de quem age em função das circunstâncias, em função das suas frustrações e dos seus apetites de poder. E não podemos também aceitar que se tente ignorar aqueles que serão, objetivamente, os pontos essenciais do acordo que viabiliza a solução de governação confirmada pelo Representante da República para a Região Autónoma dos Açores. Não podemos aceitar que se abandone o debate sério e leal, para se introduzir um discurso populista primário sobre registos radicais absolutamente intoleráveis que violam princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico constitucional e que nada terão a ver com aquela solução governativa.