Crónicas

Oh, say can you see…

1. Disco: em “Letter To You”, Bruce Springsteen recupera três músicas que escreveu, quando andava pelos 20´s, e acrescenta-lhes outras, montando um certo misticismo que nos leva a reflectir sobre a morte. Um trabalho meditativo que segue direito para o panteão dos melhores trabalhos do The Boss.

2. Livro: Em “O Mestre de Esgrima”, Arturo Perez-Reverte, regressa aos idos da Revolução de 1868, para nos contar a história de Don Jaime Astarloa, um especialista na arte do manuseamento do florete. Um livro onde prevalecem códigos éticos que não faria mal algum que muitos de nós seguíssemos.

3. Anda, há duas semanas, e bem, a Iniciativa Liberal a perguntar pelos números da saúde. Isto porque a saúde dos madeirenses não é só COVID.

Em Março e durante alguns meses, os serviços de saúde decidiram suspender uma série de actividades programadas para que todos os recursos e esforços se concentrassem no combate à pandemia. Logo em Abril escrevi, nestas páginas, um alertar para a importância de tudo se fazer para se conseguir tratar todos os doentes, COVID19 ou não, que necessitassem de hospitalização, com toda a segurança. Até porque os índices de infecção na Madeira estavam, felizmente, baixos e a curva mais do que controlada.

Quantos actos médicos e de diagnóstico, da medicina física e de reabilitação às análises clínicas, passando pela radiologia, endoscopia, gastroenterológica, cardiologia, anatomia patológica ou pneumologia, entre outros, foram adiados ou cancelados? Quais as quebras no recurso aos serviços de urgência, nestes meses? Quantos deixaram de recorrer ao hospital com problemas graves, com medo de apanhar COVID? Quantos, por sua iniciativa, faltaram a consultas e exames marcados? Quantas juntas médicas deixaram de ser feitas?

A que ritmo funcionaram os cuidados de saúde primários, primeira linha da prevenção e do combate à doença? Rastreios, exames de diagnóstico, referenciação hospitalar? Por via disso, quantos casos ficaram por identificar? E cirurgias adiadas? E canceladas? Reabilitação? Fisioterapia?

Oficialmente, consultado o sítio do SESARAM, os últimos números conhecidos remontam a 2018. A lista de espera para consultas de especialidade contava, nessa altura, com 34.699 utentes e a de cirurgia com 20.909.

Em 2019, Herberto de Jesus, Presidente do IASAUDE, em declarações prestadas a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, na Assembleia Legislativa da Madeira, dizia que seria “insensato e irreal dizer que vão deixar de existir listas de espera na Madeira” e remetia para o SESARAM a divulgação dos números.

Se, em 2019, a situação era esta (não se sabendo os valores reais), não é difícil imaginar que, neste momento dramático que vivemos, os números tenham aumentado.

Dizia-me um amigo, há dias, que se queria saber os totais que fizesse um requerimento para que esses me fossem facultados. Não alinho em “democracias de requerimento”. Era assim que no salazarismo bafiento se tratava de tudo: com requerimentos em papel azul de 25 linhas, que, a maior parte das vezes, ficavam sem resposta.

Acredito cegamente na democracia transparente, onde todos temos o direito de saber de tudo o que se passa relacionado com os assuntos da governação.

Pela minha parte, vou continuar a insistir e a exigir que sejam revelados os números da saúde.

4. Para a maioria das pessoas, não será novidade nenhuma que, entre republicanos e democratas, o amor seja menos que nulo. O que tivemos a oportunidade de ver no primeiro debate entre Trump e Biden é significativo, e nem uma certa moderação no segundo, atenua o mal feito. Aquilo a que assistimos é a total e completa cristalização de uma tendência: o ódio.

Desenganem-se os que pensam que isto começou com o advento de Trump. As relações entre Reps e Dems andam pelas ruas da amargura há muito mais tempo. Nunca tinham era, publicamente, batido no fundo. Ultrapassaram-se todos os níveis e isso está muito longe de ser benéfico para a democracia da maior potência do mundo.

Não foi assim há tanto tempo que o eleitorado americano flutuava, votando ora num, ora no outro, considerando que ambos os partidos eram a consubstanciação do “american way of life”, no que à política dizia respeito.

As preocupações do americano médio com a política passaram de questões locais para questões nacionais (pode atestar-se isso com o quase desaparecimento da imprensa local). Por outro lado, surgiu uma enorme dicotomia entre uma América rural (a América Profunda) e as grandes cidades, realidades com interesses antagónicos. Estas divisões levam a que as eleições, nos Estados Unidos, se tenham tornado altamente competitivas e com uma importância que nunca tiveram.

As eleições presidenciais, que aí vêm, têm muito mais de referendo às políticas do presidente do que de discussão de novas ideias e novos rumos para o destino comum dos americanos.

Não há muitos anos, dentro do mesmo partido, fosse ele o Republicano ou o Democrático, conviviam liberais e conservadores. Muitas das vezes, isso dependia do estado de onde vinham. Os democratas dos estados mais rurais tendiam a ser mais conservadores e os republicanos dos estados da costa este, mais urbanos, eram mais liberais. Isso quase acabou.

O que temos é uma uniformidade partidária que separa democratas de republicanos. Alguns eleitores mudaram de partido para que fiquem onde as suas crenças estão, e outros mudaram as suas ideias de modo a encaixarem com o seu partido. Sejam uns ou outros, quem fica a perder é a diversidade e, logo, a democracia.

Tudo isto leva a uma enorme polarização da política americana, criando um sistema que encoraja radicalismos e afasta consensos. Não há meio-termo, acabaram-se os compromissos.

O sistema tripartido de governo transformou-se em algo de incaracterístico, resultado de lutas partidárias intermináveis. A prova de que o bipartidarismo não é natural na política, porque potencia tensões e normaliza maneiras de pensar.

Os EUA estão, actualmente, nas mãos de um duopólio controlado por interesses. A presidência americana é pesada. Com os anos, foi-se transformando e ficando na mão de pessoas muito diferentes dos grandes presidentes do passado. Hoje, o presidente, é assim como que um rei eleito democraticamente e com poderes extraordinários. Nem Trump, nem Biden estão à altura do trabalho.

As oscilações no poder deixaram de o ser apoiadas em políticas e ideias. A demonização tomou o lugar do debate e quem está na oposição só tem de esperar que, quem seja poder, cometa erros, seja criticado pela opinião pública e perca eleições. E, depois, o ciclo recomeça.

A política como arte do bem comum desapareceu e foi substituída por mensagens ocas, de soma igual a zero. Adicione-se a isto os interesses dos Estados, muitas das vezes antagónicos, e temos uma enorme salgalhada onde a falta de programas apresentados ao eleitorado e o discurso do vazio tornam-se necessários.

Nas eleições do próximo dia 3 de Novembro, cada eleitor americano, com um voto, vai votar em duas coisas. Um democrata vai votar em Biden e contra Trump, e um republicano vai votar em Trump e contra Biden.

Ganhe quem ganhar, vai ter de gerir um país partido ao meio e com feridas profundas. Se eu votasse na América, votaria naquele a quem reconhecesse a maior capacidade de curar o mal profundo que atravessa o país. Um voto na sanidade.

Por isso, o provável, era ficar, deprimido, em casa.

5. “Não existe Thor, nem o Incrível Hulk, Capitão América ou o Homem de Ferro. Não há Percy Jackson, Hancock ou as Tartarugas Ninjas. Os heróis que salvarão o mundo do caos não existem. Ninguém aparecerá, se cairmos de um prédio. Nada vai acontecer se dissermos em voz alta: “Oh! e agora quem nos poderá defender?”. Vemos filmes e lemos banda desenhada, e pensamos que, quando tudo estiver perdido, os X-Men chegarão para dar conta do recado e tudo acabará em bem. Mas não. Se não fizermos nada, o mundo vai cair para um imenso e profundo buraco.

Nós, sem poderes ou acessórios especiais, somos os heróis desta história.

O mundo está nas nossas mãos.” - Val Garcia

Fechar Menu