Talvez ler
Alberto Manguel ofereceu à cidade de Lisboa a sua portentosa biblioteca de 40 mil volumes. Após a instalação e subsequente catalogação do acervo, os cidadãos-leitores terão uma das mais fabulosas bibliotecas provindas de um colecionador particular: um extraordinário exercício de bibliofilia (Manguel fala em “bibliomania”) que conjuga, na simultaneidade de um só espaço, a variedade, raridade e universalidade de muitas dessas obras (algumas primeiras edições e exemplares raríssimos). Manguel, cidadão canadiano nascido na Argentina — onde, na sua adolescência, segundo confessa na entrevista que deu ao E-Revista há um mês atrás, “lia para Borges todas as semanas” — é hoje um cidadão do mundo, porventura o mais internacional dos bibliófilos (Steiner chamava-o “Dom Juan das Bibliotecas”), apreciado pelos seus eruditos ensaios sobre o livro e a leitura, de que o mais fundamental será, talvez, o magnífico “Uma História da Leitura” (o que me traz à memória uma conversa com Tolentino Mendonça em casual encontro numa livraria da capital, em que me dizia, à laia de justificação para as nossas preferências partilhadas, que o mais fascinante será sempre “livros que falam de livros”).
Mas, os tempos não estão fáceis para o livro e a leitura, para o reconhecimento do ato de ler como verdadeiro exercício de cidadania ativa. O livro-objeto está claramente a perder terreno para o “triunfo das máquinas” (há filmes com títulos destes...), cujos arautos, algo deslumbrados, advogam uma novíssima eficácia pedagógica, mas omitem o que se perde em conhecimento, imaginação, discursividade, pensamento crítico, e todo o arsenal da linguagem como compreensão do mundo e lugar de acesso à liberdade e ao futuro. Ler é um ato profundamente humano, uma prática decisiva na estruturação do sujeito, da sua liberdade e responsabilidade, da sua vocação para agir, com a consequente compreensão da moralidade e da solidariedade. O livro e a leitura permitem-nos a experiência da lentidão e do sentido: nada cresce com pressa, a lenta maturação da vida, da subjetividade e dos processos mentais não se compagina com o imediatismo e a espetacularidade. A leitura estrutura, o audiovisual dissolve; da máquina ao maquinal vai um curto passo... E onde fica o milagre de pensar e aprender a ser? “É só quando o leitor pega no livro e o lê que surge a possibilidade de que algo aconteça”, diz Manguel. Por isso, a educação terá de ser “um espaço aberto à imaginação, um campo de liberdade. Se isso acontecer, talvez deixemos de estar à beira do precipício. Porque é aí que estamos agora. À beira do precipício”.
Mas, o que é que isso interessa, nestes tempos de infortúnio e evanescência, em que andamos o tempo todo a correr em círculo para chegar a lado nenhum? Sim, há outros mundos fora do território dos écrans: contra o discurso dos filisteus, é sempre possível defender outros modelos, outras racionalidades, outros sentidos — aqueles em que a vida se desdobra em mais vida. E tudo passa pela educação.
Por isso, não deixa de ser uma iniciativa de especial pertinência (e coragem) a promoção, pela Contigo Teatro, do VIII Encontro de Leitura em Voz Alta, que tem lugar hoje e amanhã no Funchal, onde todo o destaque vai para a palavra, a língua, o livro e a leitura. De um conjunto de painéis diversificados (na abordagem transversal e no tratamento dos temas), reputo como de especialíssimo interesse a conferência de António Carlos Cortez, “Ler e escrever no tempo dos tablets e das redes sociais. Ou o regresso urgente dos clássicos”.
Vozes que bradam no deserto?