Crónicas

Representante da República

1. Disco: Junte-se Deb Googe, dos My Bloody Valentine, com Steve Shelley e Thurston Moore, dos Sonic Youth, e temos o último trabalho deste último: “By the Fire”. O disco é, sem margem para dúvida, um dos melhores do guitarrista americano.

2. Livro: É importante saber que estes tempos em que vivemos, sendo únicos e irrepetíveis, têm semelhanças com outros do passado. “Contágios - 2500 Anos de Pestes”, de Jaime Nogueira Pinto é um livro imprescindível para compreendermos este presente a que tanto nos custa adaptar.

3. Apesar de conhecidas, desde tempos imemoráveis, as ilhas que constituem o Arquipélago da Madeira foram formalmente descobertas no século XV.

Basta olhar para um mapa, para que facilmente se perceba a importância geoestratégica destas ilhas, pois a Madeira ocupa uma posição fulcral na rota de retorno do continente africano.

O domínio das ilhas foi doado pela Coroa ao Infante Dom Henrique, tendo-se iniciado o povoamento por volta de 1425. O arquipélago foi dividido em três capitanias: Machico para Tristão Vaz Teixeira, Porto Santo para Bartolomeu Perestrelo e Funchal para João Gonçalves Zarco.

Este modelo, de capitanias, foi experimentado e testado tendo servido de paradigma, mais tarde, para a colonização de São Tomé e do Brasil.

As capitanias eram governadas, com total autonomia, pelos capitães donatários. Cabia a estes a representação dos interesses e autoridade do Estado nos respectivos territórios, garantindo proventos e administrando bens. Serviam, ainda, de interlocutores entre as populações e o Estado. Os capitães gozavam de largos poderes administrativos, judiciais e fiscais, representando a autoridade máxima nas capitanias. Cabiam-lhes as funções de concessão de terras, da defesa e da Justiça, sendo-lhes vedadas, apenas, as penas de talhamento de membros e de execução. Respondiam pelos seus actos directamente perante o Infante e, mais tarde, perante o Estado, sendo remunerados com parte, geralmente dez por cento do dízimo, a chamada redízima, dos rendimentos que, na capitania, cabiam ao Infante/Estado. Tinham o monopólio dos moinhos, do comércio do sal e dos fornos de cozedura de pão.

Esta situação manteve-se por todo o século XVI, até à perda de soberania da coroa portuguesa para a coroa espanhola.

São os Filipes quem cria a figura do Governador. Governadores-gerais, Governadores Capitães Generais e Governadores Civis, sucederam-se como representantes do Estado centralizador.

Em 1835 é criado o distrito do Funchal. A figura do governador-civil continua a existir, indicado pelo Estado, e serve para controlar a Junta Geral, uma espécie de protogoverno, com um quê de “autarquia” regional. Com o tempo, esta Junta foi ganhando mais poderes, que nunca chegaram a ser muitos, e só se extingue com a tomada de posse do primeiro governo da região, resultado de eleições autonómicas.

A Constituição de 1976 consagra a criação dos órgãos da autonomia: governo próprio e assembleia regional. Fica assim dotada a Madeira de poder legislativo e de poder executivo, sendo os tribunais um dos factores de unidade do Estado, a par dos negócios estrangeiros, da defesa e da segurança interna.

É esta mesma Constituição que consagra a criação do Ministro da República para a Madeira (que a revisão de 2004 passa a designar como Representante da República, numa mera operação cosmética, mesmo que clarificando alguns dos poderes), um substituto da figura do Governador, cargo criado pela dinastia espanhola aquando da perda de soberania portuguesa em 1580. Segundo a Constituição, esta personagem representa a soberania portuguesa na Região Autónoma da Madeira e articula as relações entre os órgãos de governo próprio da região e os órgãos de soberania do país. O titular é nomeado e exonerado pelo presidente da República, depois de ouvido o governo nacional.

“Representa a soberania portuguesa”… e é aqui que reside a sua desnecessidade, pois a autonomia não questiona a soberania logo esta não carece de representação. A Autonomia é, isso sim, um prolongamento da soberania.

4. Para que não fiquem dúvidas na cabeça de ninguém, nada do que a seguir se escreve está contrário aos princípios consagrados na Constituição da República ou no consignado nos Estatutos Político-Administrativos da Madeira e dos Açores.

Tenhamos como assente que a Autonomia é a capacidade/qualidade que um determinado território tem de estabelecer, com liberdade, as suas próprias leis ou normas.

É aqui que entra o princípio da subsidiariedade: “Nada deve ser feito por uma maior e mais complexa organização que possa ser feito tão bem, ou melhor, por um modelo organizacional menor, simples e eficiente”.

A subsidiariedade diz respeito a todas as instituições humanas, incluindo o Estado, e a legitimidade das autonomias reside neste princípio. É por ela que teremos sempre mais e melhor democracia.

A descontinuidade territorial dos Açores e da Madeira (não sendo o único) é factor determinante para que estas parcelas do território nacional tenham autonomias fortes e funcionais. A ultraperificidade dos arquipélagos é uma realidade insofismável com todas as consequências que isso acarreta: para que se consigam os mesmo resultados isso implica, sempre e a todos os níveis, um esforço muito maior.

E a insularidade. Insularidade que é todo um mar que nos separa. Esse mar que tem de ser diminuído e transposto nos três sentidos. Urge a continuidade territorial que só pode ser conseguida pelo respeito de todos pela autonomia. Pelo assumir, por parte do Estado, como um todo, da responsabilidade de mitigar distâncias.

Sentimo-nos como que presos no paraíso, pois amamos a nossa terra, mas sentimos-lhe os constrangimentos...

Autonomia é liberdade. É capacidade de gerar autogoverno, de exercer o livre arbítrio e a escolha, o poder do individual sobre o colectivismo.

Queremos, assim, construir uma Autonomia apoiada nas raízes da nossa identidade insular: genuína, dinâmica e evolutiva. Queremos uma Autonomia aprofundada, aperfeiçoada, alargada e não um processo fechado, basaltificado como as montanhas do arquipélago.

Tendo em atenção o atrás escrito, só podemos considerar que a figura do Representante da República tem de ser extinta, pois não passa de uma figura tutelar do centralismo, que mais não é do que um claro resquício de poder colonial. É um anacronismo. Não faz sentido.

A dificuldade aparente de tudo isto, dizem alguns, tem a ver com o modo como se podem controlar e fiscalizar os órgãos democraticamente eleitos e o que emana dessas instituições da autonomia. A solução é simples e por demais evidente: os Tribunais Constitucional, e o de Contas, e a Presidência da República, são suficientes para o exercício do poder de regulação e fiscalização, parte do qual já exercem.

As autonomias insulares têm que o ser de Direito, sem tutelas injustificadas, sem vigias, sem suspeições ou desconfianças absurdas e deslocadas. Queremo-las participadas, dignificadas, respeitadas por todos, em democracia e liberdade, estando disponíveis para assumir a responsabilidade adicional inerente.

5. “A autonomia, que é evolutiva e que se quer crescente, tem de corresponder às necessidades e aspirações dos povos dos Açores e da Madeira, sem quebrado fundo comum nacional, mas antes, com o seu pleno reforço. Cabe-lhes governarem-se a eles próprios, (…) para que se consolide e cresça a autonomia (…)” – Francisco Sá Carneiro

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