Casa de escritores
E no Funchal? Não poderia existir no n.º 284 da Rua da Carreira uma casa Herberto Helder...
Gosto de visitar casas de escritores. Casas desabitadas onde se preserva a memória de quem nelas viveu ou morreu, de quem as mobilou ou mesmo, em alguns casos mais raros, as desenhou. Existem por esse mundo fora de todas as formas e feitios. Todas se alimentam dessa curiosidade quase mórbida que nos leva a acreditar que é possível desvendar os segredos de um escritor espreitando à fechadura da sua porta. Não é. Que nos adianta conhecer a mesa onde escreveu, apalpar a cama onde dormiu, ou contemplar o lavatório onde lavou os dentes? Nada. E, todavia, não há leitor devoto que não tenha vontade de vasculhar estas relíquias.
Como arquitecto, tenho a desculpa ideal para visitar – em visita de estudo... – as casas de muitos escritores da minha devoção. Conheço mais de duas dúzias, sou mesmo reincidente em alguns casos, e devo dizer, por estranho que pareça, que quase todas me revelaram novas coisas não só sobre o escritor que as habitou, mas também sobre o meu próprio ofício. Assim aconteceu, por exemplo, com a de Miguel Torga, em Coimbra. Em 1952, o escritor encomendou o projecto da sua casa a Arménio Losa e Cassiano Barbosa, dois arquitectos modernos da Escola do Porto. O resultado, porém, não lhe agradou. Torga gostava de arte popular, do mobiliário rústico, de ingénuos ex-votos e de arquitectura bucólica, “de casas de moradia/ caiadas e com sinais/ de ninhos que outrora havia/ nos beirais”. Acabou por desenhá-la ele próprio num desajeitado “português suave”, apondo-lhe depois a assinatura de um arquitecto amigo. A casa é de uma banalidade confrangedora.
E como podia deixar de ser? A verdade é que podia bem deixar de ser: no Verão de 2019 tive a oportunidade de visitar, em Capri, acompanhando um grupo de intrépidos excursionistas, a extraordinária casa de Curzio Malaparte. Em 1932, o escritor encarregou o arquitecto Adalberto Libera, pioneiro do racionalismo italiano, de projectar a sua casa. O projecto era de uma banalidade confrangedora. Malaparte despediu Libera e, com o auxílio de um pedreiro local, construiu ele próprio a sua casa, alcandorada num rochedo sobre o mar, onde parece reflectir-se toda a sua destemperada mitomania. “Una casa come me” – escreveria mais tarde. A Casa Malaparte viria transformar-se, com toda a justiça, numa das obras de referência da arquitectura do século XX.
E no Funchal? Não poderia existir no n.º 284 da Rua da Carreira uma casa Herberto Helder, tal como em Las Palmas existe, enroscada no seu sombrio pátio, a discreta Casa Pérez Galdós? “Bate-me à porta, em mim, (...)/ ressoando violentamente pelos corredores/ e paredes e pátios desta própria casa/ que eu sou.” Que nos teria a contar a casa de um poeta que se confunde com a sua própria casa? Como o caracol, Herberto Helder partiu carregando-a consigo toda a vida. Talvez por isso não tenha precisado regressar.