Crónicas

«A poesia vai acabar, os poetas Vão ser colocados em lugares mais úteis»*

Não há nada mais dissuasor para o processo criativo do que a preocupação constante quanto à capacidade para pagar as contas

Deixem-me falar-vos da linha de apoio excecional e temporária destinada às entidades culturais sem fins lucrativos. Dotada de 200 mil euros, foi criada em abril de 2020 para prestar auxílio ao setor cultural e minimizar os efeitos da pandemia. As candidaturas para aceder às verbas desta linha puderam ser entregues de 6 a 30 de abril. Sobrou dinheiro. Cerca de 40 mil euros. Foram 26 as entidades que se candidataram a este apoio, mas apenas 23 foram consideradas elegíveis: sete bandas filarmónicas, um grupo folclórico, cinco grupos de teatro, um grupo de dança e quatro grupos musicais. Candidaturas elegíveis a título individual foram cinco: duas de teatro e três de músicos/as.

Perante este panorama, poderemos até pensar que o setor cultural na Madeira tem escapado à crise provocada pelas medidas de contenção da pandemia. Mas, muito honestamente, não vos parece estranho que numa crise como a que atravessamos, com cancelamentos de espetáculos, com reduções brutais ao nível de bilheteiras decorrentes das medidas de saúde pública que reduzem a capacidade das salas, com a instalação do medo a orientar a (não) ida a espetáculos culturais, com as dificuldades acrescidas no que diz respeito à mobilidade – não vos parece estranho que «sobre dinheiro»?

A mim pareceu-me, e por isso fui tentar perceber por que razão as pessoas que trabalham no setor cultural aparentemente dispensaram apoio numa altura tão difícil. E percebe-se porquê quando consultamos o regulamento do referido apoio de emergência.

Em primeiro lugar, as entidades coletivas ou singulares que apresentassem despesas de funcionamento ao abrigo dos contratos-programa celebrados com o Governo Regional (e que na altura do lançamento da linha de apoio ainda não tinham sido cumpridos por parte do Governo Regional) não puderam candidatar-se a esta linha de emergência;

De fora, ficaram também iniciativas programadas e canceladas – como por exemplo concertos, espetáculos ou exposições que tivessem uma natureza exclusivamente lucrativa – o que é um contrassenso, se pensarmos que ficou de fora a maior parte da atividade das empresas culturais e das pessoas que ganham o seu pão no setor cultural. Como se o setor cultural não devesse ser também ele profissionalizado e como se o trabalho das pessoas não pudesse ter uma natureza lucrativa, como o resto das atividades profissionais.

A linha excluiu também empresas e pessoas cujos eventos foram alvo de reagendamento, o que é também bastante discutível porque, em muitos casos, uma grande parte do trabalho já foi desenvolvido e o adiamento dos eventos não resolve o drama de quem precisa viver e cobrir as despesas que já teve. Pensemos, por exemplo, nas pessoas que têm espetáculos adiados sem qualquer data de realização prevista por causa da pandemia.

Para além de todos estes critérios que excluem em vez de incluir, esta linha de emergência, tal como os contratos-programa que são anualmente celebrados com entidades culturais, está muito centrada na realização de eventos e não no apoio às estruturas como forma de criar espaço para que possam respirar e criar – como se a cultura não fosse um processo que exige reflexão e maturação que por vezes não se materializa de imediato na realização de um evento.

Como se pode perceber, todos estes critérios de exclusão reduziram substancialmente o número de entidades culturais que podiam, de facto, candidatar-se – o que explica que tenham existido apenas 26 candidaturas – e explica também que o Presidente do Governo Regional tenha podido anunciar que sobrou dinheiro. Quem estiver com atenção consegue perceber que nas entrelinhas esquecidas deste anúncio, está quem passa neste momento por grandes dificuldades, não porque não precisa de auxílio mas simplesmente porque não pôde candidatar-se ao apoio – porque a linha foi desenhada para deixar de fora uma grande parte do setor cultural.

Esta semana, o Partido Socialista defendeu, na Assembleia Legislativa Regional, uma proposta para a criação de um auxílio financeiro imediato a empresas e operadores culturais. A proposta previa que as empresas culturais pudessem ter acesso a empréstimos reembolsáveis, sem juros, a fim de conseguirem garantir liquidez, numa época em que o setor está ainda a um ritmo muito abaixo do normal. Previa também ajuda financeira de emergência não reembolsável a operadores culturais, ou seja, para artistas que tenham visto a sua atividade substancialmente reduzida ou completamente parada.

Esta proposta era uma oportunidade para colmatar as falhas da linha dos 200 mil euros, que entretanto já está fechada, apesar dos efeitos das medidas de controlo da pandemia continuarem a afetar diariamente a vida das pessoas que viviam da cultura – e sem sabermos por quanto tempo.

Mas esta proposta foi (também) recusada pela maioria parlamentar constituída pelos partidos que suportam o governo. «Desadequada», foi uma palavra muito repetida na fundamentação da recusa. E lamento muito que assim tenha sido, porque era uma oportunidade para trabalharmos em conjunto tendo no horizonte o zelo pelo setor cultural, que tem que ver com a nossa identidade e com a abertura de horizontes para além do oceano que nos rodeia. Lamento, porque a Região continuará a não zelar pela criatividade de quem nos garante essas janelas abertas para um universo mais amplo. Não há nada mais dissuasor para o processo criativo do que a preocupação constante quanto à capacidade para pagar as contas.

Não há lugar mais útil para uma poetisa do que no centro de um poema, não há outro lugar para um músico que o da pauta musical; os atores foram feitos para encherem personagens de vida e as autoras para encherem os textos de palavras que são espaço de liberdade, os pintores nasceram para encherem telas de tintas que consigam primeiro pagar.

Mas onde

começa

a liberdade

de quem não consegue

pagar as contas

logo no princípio do mês?

* Versos do poema «A poesia vai acabar», de Manuel António Pina

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