Regressar à essência de uma “humanidade partilhada” (I)
Começam a surgir cada vez mais comunidades compassivas. Estas são projectos de intervenção comunitários que estabelecem redes de cuidados entre todos os sectores da comunidade para acompanhar as pessoas envolvidas em processos de doença crónica incapacitante, em final de vida, perda e luto. São parceiros importantes na prestação de cuidados de saúde. Borba é das primeiras comunidades compassivas nacionais.
Como médicas de Medicina Geral e Familiar (MGF), contactamos diariamente com a problemática dos doentes em fim-de-vida, suas famílias e cuidadores.
O progresso da Medicina, com cada vez melhor acuidade diagnóstica e possibilidades terapêuticas, levou ao aumento de doenças crónicas incapacitantes. O envelhecimento da população no nosso país é uma realidade que tem como consequência maior dependência. Para além disto, assistimos ao desaparecimento das redes tradicionais de cuidados, que leva ao isolamento social, cada vez mais frequente. Antigamente era comum que os idosos contassem com pelo menos um filho mais próximo, que ficava a residir na casa de seus pais, e os apoiava. Hoje em dia é frequente ver que os filhos constituem família e vão para outras cidades. Quando optam por ficar na terra de origem, vivem em casa própria, restando-lhes algum tempo, pontualmente, para apoiar o pai ou mãe, uma vez que têm a sua ocupação laboral.
O cuidador informal, é muitas vezes o próprio cônjuge, também ele idoso e com as suas limitações, que tenta estar disponível as 24 horas do dia para cuidar. A exaustão do cuidador é uma realidade para a qual temos de estar atentos. E não podemos esperar que esta problemática seja apenas da esfera dos cuidados de saúde. Torna-se necessário procurar uma resposta comunitária. Contar com a comunidade como recurso para a saúde permite resgatar as competências da sociedade e autonomia da comunidade no auxílio aos seus próprios elementos, colocando-a como parceiro na complexa tarefa de assegurar cuidados de saúde em doentes em fim de vida, suas famílias e cuidadores.
Qualquer gesto que possa fazer para ajudar, mesmo que simples ou pontual, pode marcar a diferença na vida de outra pessoa. Imagine ir comprar pão ao seu vizinho, idoso, com dificuldades na locomoção, a quem é muito penoso descer as escadas e atravessar o quarteirão para chegar à padaria. Naquele dia, o seu vizinho poderia ter pão na mesa.
Em Borba, onde trabalhamos como médicas de família, está a crescer um projecto comunitário, à luz de exemplos bem sedimentados em outros países do mundo: uma Comunidade Compassiva. A Public Health Palliative Care International define uma comunidade compassiva como uma iniciativa de desenvolvimento comunitária associada a cuidados paliativos globais, consistindo em grupos de vizinhos próximos que se juntam para organizar formas de auxiliar as pessoas da sua área de residência que vivem com doença terminal, seus cuidadores e situações de luto ou perda.1 Assume-se, portanto, que a morte, o morrer, a perda e o cuidar são responsabilidade de todos. (Continua)
Sílvia Corrales Villar e Rita Eusébio Freitas