Crónicas

“É a vida...”

Já não se pode com temas covid. Sem querer, lá caímos nesse buraco negro que suga toda a informação, o ar começa a ficar rarefeito e há que fazer uma trégua, escrever na areia e esperar que a maré vá levando as redundâncias pandémicas, ao mesmo tempo que refresca a memória e a imaginação para outras vivências e outros temas. Afinal, há mais vida para além do covid.

A Sé vai estar aberta doze horas por dia e muita gente aplaude a lúcida decisão: os fiéis, as guias, o turista, o cidadão que passa e que decide simplesmente parar ali. Olhar e ver, descansar um pouco, talvez ouvir, talvez rezar. E depois sair. Em “dias de ponta”, cosidos com a cantaria como estranhos guardiões do lugar, sentinelas da espera e da esmola que não cai, os mendigos terão mais tempo para o velho ofício da sobrevivência, um dia a seguir ao outro, sem saber se vão ser enxotados ou se a caridade fiável ainda terá para eles um último gesto. Horário alargado, mais crentes a entrar e a sair. Teoricamente, a mão cansada de estar aberta teria uma espera menos vã: hora após hora, quem sabe, lá se ouvirá um tilintar. Mas, dessa antiquíssima presença à porta dos templos, onde desde sempre se testemunha a perfídia dos homens e a injustiça do mundo, o que nos fica — passantes reconfortados pelas graças do Alto — é a memória desses olhos que, entre a acusação e a súplica, se erguem para nós em muda interrogação: “O que viestes cá fazer? A que deus fostes rezar? Olha para mim, eu estou aqui”. Normalmente, olhamos para o lado: à passagem evangélica sobre “o que fizerdes aos pequeninos”, preferimos antes aquela outra: “pobres, sempre os tereis convosco”.

A política proporciona-nos momentos sempre interessantes e instrutivos. Com o seu quê de genuíno, pela idiossincrasia do contexto, mas na verdade com pouco de original. Nada de novo debaixo do sol, diziam os antigos: vaidade, traição, corrupção, e a vã glória dos néscios que sonham com a imortalidade num rodapé da História — eis um cardápio intemporal e de todas as latitudes. Aqui também. Nas capitais do mundo ou na pequena ilha, há de tudo, mas... “à escala”. Neles, cresce o cinismo; em nós, a desesperança.

Um líder em gestação durantes meses: o discurso e os pactos ensaiam as acrobacias possíveis. Finalmente, senta-se ou é sentado num trono desenhado no horizonte do futuro. Após uma ilusão de paz, eis que estala de novo a guerra entre “irmãos desavindos”, e são alijados borda fora muitos que o carregaram em ombros na longa marcha até ao palanque do poder. Guerra é guerra e, não metaforicamente, ela é a continuação da política por outros meios. E eis que volta a ser citado o velho oráculo do camarada elevado em corpo e alma à glória do olimpo da ONU, “Roma não paga a traidores”. É a vida, como a ele também se ouvira dizer.

E há as autárquicas, uma “infernação” a leste e oeste: voltam as velhas imagens de coelhos a saírem da toca, ou de sacos de gatos que se esgadanham. Tudo compreensível, a natureza humana muda pouco. E os caciques também. Por terra, mar e ar, avançam nas suas pequenas guerrilhas: já ninguém lhes liga muito, mas não deixam de fazer estragos. Os líderes vão e vêm, mas o cacique permanece. E quer mandar. Naquelas cabecinhas pensadoras, (auto)legitimam-se como sendo a verdadeira “vox populi”. E, voz do povo, voz de Deus. É nestas ocasiões que eles ressurgem com novo vigor: a notícia do seu desaparecimento era obviamente exagerada. Pode morrer o cacique, mas o caciquismo não. É a vida...

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