Reflexões
Ultimamente, talvez por causa da nova situação sanitária provocada por uma microscópica partícula viral, tenho ouvido muito que ‘esta geração tem direitos’, que esta é a ‘geração mais formada’, que é uma ‘geração inconformada’. Fala-se, quase sempre, só dos mais novos, dos jovens.
Muitas vezes e quase de forma inconsciente, situações diversas mas sempre de grande carga emocional, obrigam-nos a recuar anos até à juventude, a idade em que sentimos que podemos com o mundo, em que tudo nos parece possível e que os nossos problemas são OS problemas. É um pouco o caso e é aqui que fui lá atrás, olhar para os anos 50/60/70 pelas lentes dos óculos de quem já viveu alguma coisa.
Nós também tínhamos direitos.
Nós também éramos a geração mais formada.
Nós também éramos uma geração inconformada.
Tínhamos direitos, como tinham os nossos pais e os nossos avós. Esses que trabalharam e procuraram superar dificuldades em tempos de medo, de fome, de ditadura. Sim, tínhamos direitos, mas sabíamos que tínhamos o dever de assegurar os direitos dos nossos antecessores. Aliás, os nossos direitos passavam pelos direitos deles. Mesmo que os não compreendêssemos, sabíamos que nada estava certo se não fosse assim.
Éramos a geração mais formada, mas sabíamos que só em parte. Porque se era verdade que alguns dos nossos pais conseguiam, com muito sacrifício, levar-nos até à Universidade, éramos uma pequenina parte; a esmagadora maioria dos jovens da nossa idade não chegava lá, ficava pela Instrução Primária (o actual 4º ano) ou já com muita sorte ‘tirava o 5º ano’ – que é como quem diz fazia o 9º ano (de hoje). E também éramos a geração mais formada porque, apesar de todas as insuficiências, sabíamos o que muitos dos nossos pais ou avós não sabiam: ler e escrever! Ler e escrever, tão natural e simples, hoje, não é?
E sim, muito inconformados!
Inconformados por um ensino que nos atrofiava, por um terrível “Deus, Pátria, Família” que nos amarrava à glorificação do ditador e da sua obra, um estado autoritário e policial.
Inconformados por tanto sofrimento e tanta miséria. Por uma emigração altíssima e os paupérrimos bidonvilles de Paris, onde os nossos emigrantes procuravam não ser condenados a vegetar.
Inconformados por uma guerra colonial injusta e criminosa contra a luta de libertação e de independência dos povos das colónias.
Inconformados pelo clima de medo, de vigilância pidesca, pelas perseguições que levaram tantos a uma clandestinidade sofrida. Pelas prisões, deportações, assassinatos de opositores.
Inconformados e sonhadores. Que, soube mais tarde, era o que mais se fazia naquela altura. E o que ainda não era proibido. Eram os sonhos de um país fechado.
E por isto, por tudo isto, a minha geração soube que era preciso ir à luta, atreveu-se a ir à luta,
A grande maioria da minha e das outras gerações – tantos quantos os que compõem as gerações que não são corpos amorfos nem estáticos, mas feitas de pessoas, com as suas características, vontades, quereres, ideologias – foram à luta. Ombreámos uns com os outros unidos, ou afastados em insuperáveis contradições; escolhemos campo. Não nos motivava o sucesso para amanhã ou a regalia da semana seguinte. Fomos desinteressados, generosos, certos do que queríamos, julgando sempre saber como fazer, ousando pensar que o conseguiríamos.
Conseguimos muito, mas como sempre a História mostra não há caminhos rectos nem de sentido único. E hoje, estamos à beira de uma perigosa esquina! Temos que escolher, querer fazer, resistir. Ou, como diz Eduardo Galeano, persistir em lutar por um mundo que seja a casa de todos e não de uns poucos!
Reflexões? Sim. De quem, por já ter vivido alguma coisa, se dá a si própria o direito de dizer o que sente.