Crónicas

Síndrome da Madeira

1. Disco: grande álbum de estreia, este das Pillow Queens. Em “In Waiting”, rema-se contra a maré. Neste momento de divisão, de querela, estas irlandesas propõem-nos pontes que devemos atravessar, rumo ao entendimento. Letras simples e um som indie envolvente: “There goes the man I want to be”.

Em tempos de “nós e eles” é muito bom sentirmos o “outro” aqui tão perto.

2. Livro: O episódio bíblico do ressuscitar de Lázaro, deixa muitas questões em aberto. Em “O Evangelho segundo Lázaro”, Richard Zimler, retoma este evento milagroso e transforma-o num romance envolvente, muito bem escrito, evocando grande compaixão. Quando o amor ultrapassa a inevitabilidade da morte.

3. Em agosto de 1973, quatro funcionários do Sveriges Kreditbank foram mantidos reféns no cofre do banco, por seis dias. Durante o impasse, um vínculo, aparentemente incongruente, desenvolveu-se entre os sequestrados e os sequestradores. Um dos reféns, numa ligação telefónica com o primeiro-ministro sueco Olof Palme, afirmou que confiava plenamente nos seus captores. Acrescentou que o que mais temia era morrer devido a um ataque da polícia.

Ao longo da história recente, são inúmeros os exemplos de casos semelhantes. Desde o de Patricia Hearst, ao do voo 847 da TWA, em 1985, passando pelos reféns da embaixada japonesa no Peru, em 96. À resposta psicológica em que um cativo começa a se identificar com os seus captores, bem como com as suas agendas e exigências, dá-se o nome de Síndrome de Estocolmo.

Ao verem-se perante uma situação extrema de onde esperam o pior, os reféns, quando a situação se aligeira, atribuem isso à bondade do raptor. Os psicólogos que estudaram a temática acreditam que a ligação se inicia nesse preciso momento. O alívio com a remoção da ameaça de morte é transposto para sentimentos de gratidão ao captor, por este não lhe tirar a vida.

São, assim, criadas ligações psicológicos entre a felicidade dos captores e a dos capturados. De fato, a síndrome é marcada, não apenas por um vínculo positivo entre cativo e sequestrador, mas também por uma atitude negativa do cativo em relação às autoridades que ameaçam o relacionamento.

Esta tipologia de dependência psicológica, pode ser transposta para outras áreas. Inclusive a política.

Quantas vezes ouvimos os outros, ou mesmo nós próprios, a falarem da percepção que têm da incompetência dos políticos, da corrupção que grassa por todo o lado. É recorrente conversa de café.

Ao falarmos sobre política, é fácil concordar prontamente que os políticos mentem, que não cumprem o que prometem, que abusam bastas vezes do poder que têm, que funcionam como casta, etc.

Quando alguém começa a tentar explicar, numa qualquer campanha eleitoral, o quão isso nos prejudica, fica normalmente a falar sozinho ou recebe logo o apodo de louco. E ao votar, fazem-no nos que passam a vida a chamar de corruptos e desleais. Não é isso a defesa daqueles que os “aprisionam” com as mentiras que aceitam como verdade?

Juntemos a isto a externalidade. Na relação entre captor e cativo, normalmente, o inimigo é a autoridade. Na política essa externalidade, que quer acabar com a relação, é um ou vários inimigos externos.

Vivemos em democracia, há mais de 45 anos. A Madeira era um das regiões de Portugal mais desprezadas e desfavorecidas. Aos sucessivos governos autonómicos do PSD, bastou-lhe (e foi muito, reconheça-se) agir como se fossemos uma junta de freguesia. Electricidade, água, esgotos, vias de comunicação, o fim da colonia, foram, nos primeiros anos, o foco. Dar a quem nada tinha um mínimo de conforto e qualidade de vida. Seguiu-se a saúde e a educação. Chegámos mesmo a ter o melhor serviço público de saúde do país. Não correu tão bem na educação.

Isto leva-nos até finais do século passado, quando começa a “desbunda” das sociedades de desenvolvimento, a construção de infra-estruturas perfeitamente desnecessárias, mais compadrio descarado, monopólios inexplicáveis, a corrupção, a dívida oculta. Ficámos reféns de quem fez tudo a seu belo prazer, revelando incompetência e desprezo por quem os elege. A maioria de nós, os que nada tinham no advento da democracia, continuam agradecidos com o pouco que têm, que lhes permite viver muito melhor do que o que viviam nos tempos da ditadura.

E não pensem, os que não votam, que não fazem parte da equação. Não são mais do que o “raptado alheado”.

Que ninguém duvide que vivemos numa democracia amputada que não protege os interesses dos cidadãos. Uma democracia sequestrada.

Obviamente que uso o termo “sequestro” como uma metáfora, para podermos entender os tempos e as relações de poder em que vivemos, especialmente se, com isso, conseguir explicar o significado, as consequências e as partes interessadas (os sequestradores e os reféns) que intervêm no processo.

No caso vertente, não será fácil separar as vítimas dos sequestradores. São muitas as partes interessadas sequestradas e muitos os diferentes modelos de sequestradores.

Parlamento, governo, autarquias, partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação, desempenham um papel essencial no sistema político. Apesar de executarem tarefas específicas, espera-se que cada um sirva os cidadãos e respeite a máxima pluralidade de interesses possíveis ou, pelo menos, que tente fazê-lo. Infelizmente, estas entidades estão a perder legitimidade, em quase todas as democracias. A maioria de nós sente que essas instituições democráticas existem apenas para servir uma minoria, uma elite, tendo perdido a sua capacidade de agir e a sua liberdade de mediar, fiscalizar e representar os interesses de todos de modo significativo.

Temos, ou não temos, a sensação, quando olhamos à nossa volta, de que o poder político está nas mãos de interesses económicos que não coincidem com o interesse de todos? Veja-se a questão dos portos, do ferry, da construção civil, da comunicação social, das pescas, etc., onde quem manda são interesses convenientemente instalados.

No entanto, reelegemo-los com regularidade, como se nada se passasse, e até com algum “amor” estranho pelo meio. O inimigo está lá longe, no Terreiro do Paço, e pouco importa que, em 40 e tal anos de Autonomia, não se tenham criado as bases para uma economia diversificada e sustentável que crie riqueza e qualidade de vida para todos os madeirenses.

Quantos de nós, mesmo aqueles cientes do seu “cativeiro”, conseguem justificar, quando votam, as decisões erradas dos seus “sequestradores” partidários? Quantos descartam políticas com as quais não concordam com um simples: “é exactamente aquilo que precisa ser feito agora”? E quantas vezes vemos estes líderes que aqui nos trouxeram, serem recebidos como libertadores de decisões pelas quais foram responsáveis? Uma parte significativa dos madeirenses, embora certamente não todos, parece ser complacente com a democracia e a autonomia sequestrada que temos. É como se se entregassem emocionalmente aos seus raptores.

A grande diferença neste modo de sequestro é que, ao invés do que seria normal, o sequestrador não dá conta a ninguém do acto praticado. Bem pelo contrário, espera mesmo que ninguém dele se aperceba. O poder do sequestrador está na sua capacidade de manter o controlo sobre as instituições, em silêncio. Para o fazer, têm de desenvolver a sua influência o mais subtilmente possível. Os cidadãos têm de viver na sensação de que tudo está normal e de que a democracia funciona. As aparências devem ser tranquilizadoras, para que ninguém tenha medo do poder que os sequestradores adquirem, e este não seja abertamente questionado.

É nisto que vivemos, numa democracia cambada, ao serviço de interesses, gerida por instituições disfuncionais, com a sensação de que isto não está melhor porque o inimigo externo não deixa que assim seja. Uma espécie de Síndrome da Madeira.

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