Que tenhas o corpo
XA quarentena madeirense cumpre a sua missão, e cumpre-a com paz social. Mas convém não baralhar as coisas
A ver se nos entendemos quanto a esta baralhada.
O Habeas Corpus é um dos mais fundamentais direitos conferidos pela Constituição. E é importante na medida em que é antigo, estimando-se a sua origem no século XIII. O seu conteúdo é actualíssimo: atribui aos cidadãos ilegalmente privados da sua liberdade o direito de impugnar a sua detenção em Tribunal. O juiz ordena que o autor da detenção lhe apresente o corpo do detido, para que possa adjudicar quanto à legalidade da sua detenção e – sendo caso disso – restituí-lo imediatamente à liberdade. “Habeas Corpus”, do latim “que tenhas o corpo”. É um direito porque é uma ordem: “que [o detido] tenha o corpo [presente a um Tribunal]”.
Podemos, ou não, concordar com as razões da detenção na origem do Habeas Corpus. Mas o seu decretamento é sempre uma derrota da autoridade que o determinou.
A quarentena madeirense cumpre a sua missão, e cumpre-a com paz social. Mas convém não baralhar as coisas. Miguel Albuquerque pode ter razão quando diz que “não há direitos absolutos”, e pode até ter razão com o que sugere com essa frase – que a prevenção da pandemia é um fim que justifica o meio.
Sucede que uma detenção ou prisão não será ilegal apenas em função de um desequilíbrio na pesagem de direitos e deveres. Pode também ser ilegal por ter sido ordenada ou efetuada por autoridade incompetente, ou ainda por ser motivada por um facto pelo qual a lei não permite detenção.
E a quarentena, ou confinamento compulsivo, não foi aprovada por lei, mas por Resolução do Conselho de Governo – como as tolerâncias de ponto, os votos de louvor, e os contratos com as Casas do Povo.
A gente percebe. Por uns tempos, o Estado andou escaqueirado, e os poderes públicos organizaram-se, tacitamente, em razão da sua proximidade e rapidez. Declarou-se o Estado de Emergência, suspendeu-se a autoridade parlamentar, e a Administração mandou sem rédea nem freio. E isto, convenhamos, excitou, acicatou e agradou muita gente, que se revê nestas formas mais primitivas de organização do Estado, e julga que Assembleias e Tribunais não passam de estorvos burocráticos às vontades iluminadas que perpetuamente nos deviam governar.
Sucede que esse tempo já passou, e com ele a desculpa para o aviltamento de certas liberdades. Pode-se defender o confinamento como medida. Pode-se atacar o desdém que a República reservou à Madeira, que nos deixou de mãos atadas. E pode-se exigir, para a Região, a soberania necessária à prevenção de risco de pandemia, para que o desdém não nos ameace da próxima vez.
O que não se pode é admitir, por decreto executivo, o confinamento preventivo de quem não só não cometeu um crime, como pode nem sequer estar doente.
O desgosto, no caso, nem é a conduta do Governo. É a desistência dos cidadãos, que insistem no descrédito de quem crucialmente se defende de uma violência. Como na Madeira é histórico, o Povo está do lado da Força. Os requerentes do Habeas Corpus são, na melhor das hipóteses, chico-espertos. Na pior, são traidores da raça, que colocam em xeque os esforços e a saúde de milhares de madeirenses. O Habeas Corpus, que é uma questão de cidadania, transforma-se num jogo político corriqueiro, a criticar tacticamente e sem ondas pela oposição, com a energia tímida e dissimulada de quem, tendo a oportunidade, faria igual. O Rei não vai nu por incompetência, mas porque os súbditos mais lhe elogiam assim as roupas.
Esta atitude de mercê presta-se a todo o tipo de enganos, mas um vale por todos.
Às tantas, o Governo predispôs-se a pagar o teste aos turistas. E dá-se ao absurdo de essa medida ser – eu vi! – elogiada, enquanto do mesmo passo se aplaudia o confinamento dos madeirenses, e se censurava quem se queixava ou queria ver livre dele.
Mágico. A liberdade do turista, que tem um valor económico – é uma importação! – merece o nosso cuidado e favor. As duas semanas do turista valem um teste. Já a liberdade do madeirense, que é um “mero” direito humano universal, não vale um tusto. Pode bem amochar por uns dias na Vila Galé, penando sequestrada a sua irrelevância.
Bem sei que os testes podem ser difíceis de obter, e que pagaríamos cara a despesa. Mas é sintomático que nem isso se discuta, e nem isso se tente, assim como é sintomático que não se contemple se a lógica dos testes resiste à circulação que em breve se adivinha e pretende.
Como uma maré que subitamente baixa, o vírus descobre o entulho que se amontoava na praia. É triste que, 46 anos depois, as manifestações mais elementares do Estado de Direito sejam ainda causa de reparo e estranheza. Sendo triste, é compreensível. O Direito é aborrecido, ou aborrecidamente representado, e não dá audiências. Os jornalistas desprezam as questões de leis, que preferem reduzir a um detalhe na literatura de escândalo, ou confiar a advogados sedentos de mediatismo. A organização e os limites do poder político não são uma forma de educação nem um código de conduta, mas antes uma película protocolar para os poderes de facto que verdadeiramente cativam a inteligência nacional.
No entanto, sempre fica deste episódio uma imagem da democracia que temos vindo a construir: uma democracia de cidadãos incompletos, que não distinguem a Constituição daquilo que lhes parece a vontade da maioria. Cúmplices, e por isso vulneráveis, a toda a sorte de abusos e incongruências, e que não precisavam de um vírus para se desestabilizar.
O Habeas Corpus não é um bizantinismo, nem uma relíquia ou curiosidade medieval. É um eixo da nossa civilização, de que historicamente se abdica em períodos de terror e opressão, como os Troubles na Irlanda do Norte, as Guerras Mundiais, ou a noite do totalitarismo europeu. O Habeas Corpus é então tipicamente algo que o Estado arranca, como tributo cobrado ao espírito por uma vontade que não consegue eliminar. Nos dias do vírus, porém, entregámos o corpo ao Estado de bandeja, para que não o entregássemos ao vírus por azar. Como se essa capitulação pudesse, alguma vez, ser inofensiva. Não é.
Quem não reivindica o corpo, não pode reivindicar mais nada.