Poderá o crime (quase) compensar? Depende
Ao contrário do que se possa crer, a típica imagem dos tribunais americanos em que os jurados decidem a vida dos seus concidadãos e que durante anos entrou pelas nossas casas através do – à época - pequeno ecrã, encontra-se profundamente desatualizada. Tal realidade já quase não acontece. Não porque deixou de haver crime, mas porque cerca de 90% dos procedimentos criminais ficam-se pelo instituto do “plea bargain”, que consiste na assunção de responsabilidades por parte do arguido perante o equivalente ao nosso Ministério Público, em troca de uma pena mais favorável do que aquela que poderia ser aplicada em julgamento. A par deste instituto existem os “cooperation agreements”, que podem facilmente ser traduzidos por Acordos de Cooperação (AC), e é sobre a oportunidade da institucionalização destes últimos no sistema jurídico português que vale a pena refletir. Estes acordos consistem, essencialmente, na colaboração entre arguidos e o equivalente ao Ministério Público na investigação de um crime, a troco de uma pena mais favorável. Na prática, os pequenos criminosos auxiliam o Estado a fazer prova dos factos e a obter a condenação dos grandes criminosos, através de testemunhos, confissões e fornecimento de provas físicas. Em troca, recebem penas mais favoráveis. É, ao fim e ao cabo, uma compensação pela sua cooperação.
Naturalmente, são muitas as questões que se podem levantar, e mais ainda os potenciais atropelos aos mais elementares princípios de um qualquer estado democrático, que esta assumida troca de favores pode levantar.
Não se pode negar que esta ideia de justiça negociada traz consigo o perigo da sua mercantilização e da institucionalização da traição e da delação. Trata-se de uma conceção mais orientada para o resultado, v.g, em casos de burla altamente organizada ou de tráfico de droga, e em que a ressocialização do cidadão e as exigências de prevenção especial passam para um plano secundário.
Mas para evoluir é muitas vezes necessário correr riscos e romper com os cânones há muito implementados. Fundamental, é não perder a consciência de que a justiça não é nem nunca poderá ser um negócio.
Entendo, ainda assim, que estes AC não devem ser regra no nosso ordenamento jurídico, mas não deixo de ver com bons olhos a sua institucionalização e aplicação excecional em situações de criminalidade altamente organizada, em que a condenação dos seus principais prevaricadores – por estarem protegidos hierarquicamente - é praticamente impossível, por falta de prova. Nestas hipóteses, encaro como razoável e perfeitamente legítimo o recurso a AC, que vão garantir em última instância o combate ao crime, o sucesso da investigação criminal e acima de tudo: a confiança dos cidadãos no funcionamento da justiça.
Não nos enganemos. Não há ideia que mais indigne o cidadão comum e descredibilize o Estado do que a de um criminoso impune por a Justiça não ter podido funcionar. A aplicação destes Acordos de Cooperação, de inspiração tipicamente americana, representariam um sacrifício menor em nome do restabelecimento da confiança dos cidadãos no poder punitivo do Estado, sobretudo na criminalidade organizada, em que os principais prevaricadores continuam a passar entre os pingos da chuva. Que o digam as muitas vítimas de burla qualificada no nosso país.